domingo, 28 de dezembro de 2008

Upa!

Lugar melhor que casa de vó, certamente nunca haverá. Foi lá que comecei a pisar o chão com os pés descalços, que pude experimentar a sensação infantil de um quase primeiro beijo ou o gosto bom de café com leite em pó ou um punhado de farinha d’água.
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No início dos anos 90, quando todos por lá ainda morávamos, a hora do jantar era de pouca fartura, imensa alegria e um corre-corre tamanho, cujo porquê naquela época não conseguia entender. Só sei que corria. Corria demais. Corria para ver os adultos sorrirem em frente à TV daquela família de dinossauros que aparecia sempre à noitinha.
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Vovó, mãe doze vezes, avó outras treze, e bisavó uma vez somente, era pouco falante e bastante sorridente. Costumava ter crises de risos incontroláveis, como aquela que lhe fez cair a dentadura enquanto saboreava farofinha e churrasco comemorativos.
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Por seus filhos, quase todos Francisco, sempre teve amor tão grandioso, capaz de perdoar mesmo aqueles de gênio mais forte. E se ali o sentimento já era imenso, o que dizer então por suas filhas, “Herena”, “Ana Rudes” e “Herídia”, assim, com “r”, mesmo, já que nessas ocasiões a troca do “l” pela referida letra era bem comum.
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No Natal, sua árvore poderia até não ser a maior da família, mas certamente era a mais pomposa, uma vez que dava sombra aos embrulhos que no dia da ceia serviriam à tradicional e sempre divertida troca de presentes entre os amigos nada secretos, já que no final das contas, todo mundo sempre se descobria.
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Agora, a casa sem ela é vazia. Chegou o Natal. Sinto falta dela, de seus vestidos floridos, de seus brincos brilhosos e de seus cordões tão bonitos. Tudo em bastante harmonia. Sinto falta de sua vaidade, de suas expressões, de seu abençoar e principalmente de seu sempre sorriso.
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Vovó, nossa flor, sempre foi em quem vimos força e reconhecimento. Dava gosto, daqueles de doer no peito, ver o orgulho e a felicidade estampados em seus olhos e sorriso após compartilhada uma conquista. Sempre sentiremos saudade suas e sempre lhe amaremos.
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Ei, vovó... Sua bisneta é linda. Muito linda. Parace aquelas criancinhas moradoras de iglu! hihi. O melhor de tudo foi que a senhora esteve aqui quando ela chegou. Bem do jeitinho que sempre lhe ouvi dizer que seria. Os cachinhos meus e de Alberto, acho que durarão bastante, ainda, porque não pretendo fazer chapinha e ele, acho que não ficará careca. Quanto às lágrimas de todos nós, essas são de saudade, tá? Benção e fica bem...

domingo, 30 de novembro de 2008

Se carrapatos fossem flores

Estava sorrindo. Posso ter certeza.
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Seu focinho brilhava, umedecido, assim como seus olhos pretos e pequeninos. O arbusto, que dançava e gracejava harmonioso na calçada da barbearia, parecia muito feliz, também, embora nenhuma flor propriamente dita lhe fizesse companhia.
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O corpinho do cachorro, vestido em pêlo branco e encardido, encostava-se às folhas e nelas roçava enquanto crescia de tanto que roubava, com cheiro, aquela pequena imensidão verde. Era uma alegria imensa. Cão, arbusto, flores, folhas e um rabinho agitado.
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Um dia, estava voltando para casa e tomei o caminho da feira. O sol era tanto que minha sombra se escondia sob meus pés. Foi então que vi um cão florido. As flores não eram coloridas. Mas estavam lá, muito bem plantadas. Pareciam ter sido postas ali como enfeites.
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As flores, além de serem de uma cor somente, não tinham pétalas, também. Eram quase só botões. Muitos botões. Bem verdinhos. Bem gordinhos. E realmente muito bem plantados, volto a dizer. Nunca havia reparado que em frente à barbearia havia um arbusto. Nunca havia reparado, também, que cachorros de rua pudessem ter tantas flores.
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Suspeito que se carrapatos fossem flores, os cães seriam ainda mais graciosos do que por natureza o são, e que poderiam curtir sua coceirinha boa em companhia de algum arbusto que solitário clama em frente a uma barbearia.

sábado, 15 de novembro de 2008

Um nariz do tamanho do mundo

Todas as manhãs ela transformava meio fio em trapézio só para ouvir grama e mato agradecerem em palavras de cor verde. Nesse trajeto, tirar do céu lascas de azul com chantilly enquanto sentia o vento leve lhe balançar os cabelos, era como ganhar em uma caixa bonita e enfeitada com laço de fita, um valioso presente.

Presente também era a lembrança de quando havia ganhado seu primeiro nariz de palhaço. Certamente não fora em uma caixa como a descrita. Mas, mesmo assim, para além dos modismos ou dos usos vazios que se fazia e ainda se faz de objetos como esse, ela sabia exatamente o que aquilo representava.

Ali, era capa, espada e armadura. Ali, era força, enfrentamento e coragem. Era a primeira vez que reivindicava algo coletivamente. Havia nela um sentimento de que aquela não seria apenas a primeira ou última vez, mas somente o começo.

Colocar no rosto um nariz daqueles, era como colocar para fora uma parte importante do palhaço que, por trás de tantas trapalhadas e de roupas que são verdadeiros farrapos, se despe de suas próprias máscaras e faz críticas das mazelas sociais.

Em outras situações, sentiu também que a alma de um palhaço se faz de simplicidade, cores e alegrias. E todos aqueles significados foram crescendo tamanha era a importância simbólica que tinha aquele objeto. Logo, passou a morar em sua mochila.

Sua mãe, no entanto, sempre viu naquilo um mero brinquedo. Tanto que um dia viu o objeto vermelhinho dançando em casa e resolveu descartá-lo dando a um menino. A menina de alma, porém não mais de idade, ao saber daquele atentado, foi aos prantos.

A perda não foi suprida, logicamente. Mas, depois de um tempo, outros narizes voltaram a morar em sua mochila, bem como outros risos e outras manifestações ganharam importantes dimensões em sua existência. Algumas destas, claro, não tão importantes, já outras, marcantes o bastante para serem caracterizadas como transformadoras.

Um dia desses, na noite de uma cidade bastante quente, quando homens cuspiam fogo e marcavam de fumaça preta o teto daquele prédio quase branco, no meio de tanta gente ela descobrira que a seu lado havia alguém de igual sensibilidade. Procurava insistente em sua mochila aquela coisa redonda e vermelhinha.

Ela ficou quieta. Observava, pelos cantos dos olhos umedecidos de emoção, cada movimento de busca. Então, o mundo inteiro se fez em cores e por dentro, ela era só riso. Sorriso. Não sabia o que dizer. Nem precisava. Ela só sentia. Sentia, naquela situação tão singela, que sua alma ia sendo pintada de riso e alegria. Exatamente como pinta o palhaço com seu coração e nariz do tamanho do mundo.

Era o começo...

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O ato de transformar

Respeitável público! Sinta-se à vontade para intervir, pois as cortinas que separavam palco e platéia acabaram de ser queimadas. Nesta mesma fogueira, que ainda faísca amarelos, laranjas e vermelhos nos mais distintos tons, jogou-se também uma trouxa bem amarrada repleta das mais diversas formas de opressão e padrões, inclusive aquele que negava a existência do teatro na essência humana. Vem, chega mais. Convido-te a transformar!
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Solte o corpo. Crie um ritmo. Crie um som. Crie o que tu quiseres, criar. Torne-se aquilo o que tu pretendes ser. Estamos no Teatro do Oprimido. Aqui, espectador é protagonista e, atrelado à vontade de transformar, ele tem o palco e não se furta de ir lá e pôr para fora tudo aquilo que lhe angustia, que lhe machuca, que oprime a ele e a seu semelhante. Assim, um bom exercício de cidadania e ética.
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Criado por Augusto Boal, o Teatro do Oprimido utiliza-se de meios estéticos para buscar alternativas de solução de problemas reais de opressão. Desta forma, pautados nos princípios da ética e da solidariedade, técnicas, jogos e exercícios, são capazes de fazer despertar em qualquer pessoa formas variadas de expressar sentimentos, dúvidas, opiniões.
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No Teatro do Oprimido, método hoje presente em mais de 70 países nos cinco continentes, a técnica mais praticada em todo o mundo é o Teatro-Fórum. Nesta ocasião, encena-se uma história real de opressão, seja ela de classe, gênero, raça, credo ou qualquer que seja a situação em que um personagem oprimido entra em conflito com um personagem opressor em defesa de seus objetivos, mas acaba por fracassar.
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A partir de então, sensibilizado, envolvido ou mesmo atormentado, o espectador é convidado a ocupar o lugar do personagem oprimido e propor, em cena, alternativas possíveis de transformação daquela realidade. O mais interessante de tudo é que neste jogo simples de encenações, mediado por um Curinga, facilitador do Teatro do Oprimido, democratiza-se os meios de produção cultural e fortalece-se a cidadania dos indivíduos.
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Boal diz que “o ato de transformar é transformador”. Aqui, no Teatro do Oprimido, como dois pesos que parecem dançar variantes em lados opostos de uma mesma balança, tudo o que não é proibido torna-se perfeitamente permitido, pois o objetivo é um só: usar a arte para melhor entender o mundo e entender o mundo para transformá-lo. Sendo assim, convido-te a transformar. Vem! Basta levantar e dar um passo à frente. Ao final, tu perceberás como esta cadeira aí, na verdade, nem é tão confortável quanto parece.
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Convite
Teatro do Oprimido de Ponto a Ponto
Data: 31 de outubro de 2008
Horário: 18h
Local: Museu Histórico e Artístico do Maranhão. Rua do Sol, 302. Centro Histórico. São Luís-MA.

sábado, 18 de outubro de 2008

Só um parêntese

Enquanto seus pés saboreavam passo a passo aquele chão cor de chocolate, a menina pensava (bom, para falar a verdade, não era só pensamento. Eram olhos sambantes, eram risos incontidos e caracteres saltitantes das pontas de seus dedos quase pequenos. Dedos esses que completavam aquela mão sobre o estômago vazio onde borboletas dividiam lugar com aquela fome tão típica das madrugadas. Ela também não gostava de parênteses, mas estava achando muito divertido escrever um texto inteiro dentro de um. Divertia-se mais ainda ao antecipar, em pensamento, o momento exato em que ele, o danado do parêntese, seria fechado e que a partir de então se começasse a falar sobre outra coisa qualquer. Na verdade, ela acabava de concluir que parêntese nada mais era que coisa de gente cínica. A pessoa abre, fala o que quer e o que bem entende, se declara, canta, resmunga, comenta ou faz sabe-se lá o quê, e depois fecha e finge que nada foi declarado, cantado, resmungado, comentado ou sabe-se lá o que feito. Para ela, era como dizer exatamente o que se queria dizer, mas deixar nas mãos do leitor a escolha sobre o entrar ou o saltar sobre aquele vão. Engana-se, e muito, quem salta parênteses. Ela pensou. Parêntese é coisa de gente esperta. Esperta e cínica. Pôs-se a pensar novamente) em quando seria a próxima vez que seus pensamentos ganhariam a virtualidade daquela tela.

sábado, 27 de setembro de 2008

A letra A

Foto-missão
dirigida por Paula Camily
e clicada por Jane Maciel

E naquela foto amarelada, encontrada em um livro já derrotado por um por pouco não sangrento massacre de traças, estavam lá representadas todas elas, letras charmosamente pomposas, artigos muito bem definidos e sempre tão presentes, mesmo para aqueles que fazem da vida um verdadeiro exercício de constante desligamento e pura desatenção.
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A letra A nada mais era que a menina em seu vestido antigo, nada curto, mas não tão comprido... Era o escorregador posto no meio daquele parquinho que só depois de grandes descobrimos o quanto era pequeno... Era a capelinha bem simples e calorenta onde os moradores passavam as tardes de sábado em oração ou a bonita torre Eiffel, construída para honrar o centenário da Revolução Francesa em 1889.
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Caminhando um pouquinho mais no tempo, tínhamos nos bolachões um lado A repleto de belas canções e saudosos ruídos, verdadeiras músicas aos ouvidos. E já que falei em música, como não lembrar das palavras de Nando Reis ao ordenar o abrir a porta e o entrar de alguém que tem em seu nome a letra A?
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Nas leituras que fiz sobre a letra A, descobri que esta, além de ser a primeira na maioria dos alfabetos, caracteriza-se por exprimir inúmeras relações entre palavras e substituir outras preposições. Um verdadeiro ícone da diversidade!
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Importante ressaltar que esse destaque não se dá somente no campo das letras, já que podemos citar como exemplos a Matemática, e sua representação de uma quantidade variável conhecida; a Física, e sua presença enquanto símbolo de aceleração; ou ainda a Astronomia, quando a letra é utilizada para indicar a principal estrela de uma constelação.
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O engraçado é que aqueles que me vêem falando assim, nem imaginam o quanto as aulas de Português eram as indesejadas de minhas horas. Para se ter uma idéia, uma vez fui pega em flagrante pela professora enquanto simulava seu assassinato com uma grafite. Ao perceber que ela me olhava, ainda tentei disfarçar fingindo que aqueles movimentos nada mais eram que a verificação da falta de ponta na tal lapiseira.
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Mas voltando o foco a ela, tenho a impressão de que o que acontece com a letra A transita em dois extremos, um que beira o descaso e outro, por que não dizer, o verdadeiro temor. Sim, de tão temida a letra é seqüestrada. Dá-se a ela um sumiço. E as pessoas? Ah, essas nem notam. Ou alguém saberia me dizer o que foi que fizeram com a letra A que deveria estar junto às letras U, F e M lá na entrada da universidade?
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Fico aqui pensando com os meus botões... Se o mesmo Reuni que fez aumentar 476 vagas no vestibular deste ano em relação ao de 2007 não prevê a contratação de professores ou a ampliação dos quadros técnicos e da estrutura física da universidade, o que dizer sobre a confecção da letra A para estampar a sua entrada? As pessoas diriam que era supérfluo.
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Talvez o magnífico reitor ou a maioria de seus estudantes nem percebam que a letra A é uma questão de identidade. Sou de defender que se Stuart Hall, um verdadeiro entendedor das identidades culturais, tivesse que de forma sábia proferir algo sobre esta fabulosa letra, certamente teriam sido essas as suas palavras. E quanto à vida da letra A? Esta é um combate.

sábado, 13 de setembro de 2008

Ganhei dinheiro na prisão

E não havia mais como pagar as tantas contas que de tanto chegar já sobravam na gaveta da cômoda que ocupava o canto daquele quarto tão pequeno. Em toda a cidade, a crise não se fazia esconder de um par de olhos sequer e a prova disto estava nos tantos barracos feitos de madeira e papelão que serviam de abrigos a famílias inteiras.
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O que talvez ninguém conseguia imaginar era que havia um casal que, mesmo tão preocupado e sofrido por conta da crise, conseguia tirar de bem pouco, momentos de grande felicidade. E sob o céu de estrelas que para muitos servia de teto, todas as noites eles brincavam de ser ricos.
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Em papel, Charles desenhou notas de mentira para que ele e sua esposa pudessem brincar de comprar e vender propriedades e se arriscar no mercado imobiliário norte-americano. Compravam ruas, avenidas, bairros inteiros. Construíam casas e hotéis e viravam os verdadeiros donos da cidade!
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E foi assim, brincando de ser feliz, com notas de mentira e uma toalha de mesa xadrez, que Charles Darrow, um desempregado vendedor de sistemas de aquecimento, falido após a quebra da bolsa de 1929, criou um dos mais populares jogos de tabuleiro, o Banco Imobiliário.
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Um dia desses, um amigo militante reclamava em tom choroso a falta de sorte no jogo. “Descobri que não dou certo para burguês”. Disse-me ele. “Nem eu”. Respondi quase que sem pensar. Ele me contava que havia acabado de falir em uma partida de Banco Imobiliário após ter assistido, literalmente sentado, ao verdadeiro monopólio construído por sua mãe.
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Passada a empolgação e toda a lerdeza de minha conexão discada, começamos a conversar. Por conta de uma série de ideologias, quase tropeço nas teclas para lhe confessar que gostava daquele jogo tão capitalista. Foi então que descobri que a partir de sua angústia, havia eu encontrado explicações revolucionárias para o feito!
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Chegamos à conclusão que independentemente da sorte no amor, para se dar bem no jogo nessas circunstâncias, é preciso fazer como Charles e Ester, só que de forma ideologicamente contrária. Nos colocamos então a imaginar uma realidade diferente daquela que está posta.
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Nessa nova realidade, agora vermelha e bem mais popular, os terrenos comprados servirão para fazer a reforma agrária e construir casas populares, já as empresas e companhias serão todas estatizadas. Ocuparemos fábricas, rádios e canais de televisão. Enfrentaremos a polícia e derrubaremos os ditadores.
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Será um jogo todo jogado de forma coletiva, como as “sociedades” que já ouvi outra amiga (também viciada na prática), comentar, “só que de forma ideologicamente contrária”. Sendo assim, se antes o alvo era monopolizar, de agora em diante, o objetivo é fazer a revolução. Pregaremos o desenvolvimento de uma comunidade pautada no socialismo e a cada casa avançada, a cada conquista, ganha-se militantes.
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Convertemos o jogo para a lógica da luta. Nos momentos de interação dos encontros estudantis ou no intervalo das aulas das escolas, as cartas de Uno dariam lugar ao novo entretenimento. Mas, também, não sejamos tão otimistas, nunca se sabe. Pode haver pessoas jogando o nosso jogo “só que de forma ideologicamente contrária”. E aí, o que faremos?
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Ah, mas eles podem, também. Aprendi, com essa história toda, que todo mundo tem o direito de ser feliz, ou pelo menos brincar de ser. Um dia desses, eu fiquei apenas com uma nota de “1 dinheiro”. Todos os meus amigos de 19 anos, ou menos que isso, sorriam de mim. Mas, não me deixei abater e aprendi que em Banco Imobiliário, quando não se tem dinheiro, a melhor saída é ir para a cadeia.
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E foi assim que dei a volta por cima e fiquei rica. Foi assim que ganhei dinheiro na prisão. Fiquei respeitadíssima na mesa, e não mais por conta dos meus vinte e um anos. Não que eu tenha sido respeitada alguma vez por conta disso, mas esta parte prefiro não comentar. Finalizarei apenas a dizer que foi um verdadeiro sucesso! E então, alguém aceita, gentilmente, o convite para uma partida?

sábado, 23 de agosto de 2008

Nossos ritos, minhas passagens

Faz metade de um ano que queimei aquele navio. Lembro-me da noite estrelada, do gramado molhado de sereno, da fogueira alaranjada, dos pulsos firmes, dos olhos úmidos e das mãos dadas a expressar a angústia de quase cem corações. Havíamos chegado ao final.
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Minutos antes, projetaram na parede do lado de fora do convento algumas fotos de todos daqueles vinte e três longos dias de toda a nossa vivência. Foram dias inesquecíveis. Em pensar que de início éramos apenas desconhecidos. Alguém vindo de alguma parte de Minas, do Brasil ou da América Latina em busca de uma experiência revolucionária. De algo transformador.
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E assim o foi. Dos sete dias de preparação, dos doze dias de vivência em acampamentos, pré-assentamentos ou assentamentos do MST, e dos cinco últimos dias correspondentes à fase de retomada, o último foi o mais doído. Todas aquelas lembranças, todos aqueles sentimentos.
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Se antes tínhamos conhecimento por meio dos livros de tamanha a opressão e as injustiças por que os movimentos sociais e populares passam, agora as marcas disso estavam minimamente expressas em nossos arranhões, picadas, calos e queimaduras de sol.
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Um arrepio imenso foi surgindo. Não havia como passar por tudo aquilo e ser simplesmente a mesma pessoa depois. Estávamos ali, de mãos dadas, quase que abraçados e a chorar. Uma fogueira, um barco de papel, um cesto de fitinhas vermelhas, a cor da revolução.
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Conta a História que na época do descobrimento das terras, um grande conquistador, ao aportar na América do Sul ordenou que seus homens ateassem fogo em seus navios para que não fossem traídos por suas próprias fraquezas e desistissem da luta para retornar às suas origens.
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As pessoas caminhavam pegavam um pouco de fogo na fogueira, ateavam no barquinho e diziam o que elas queimavam. “Eu queimo os pelegos!” Gritou um rapaz. “Eu queimo os burgueses!”, outro. “Eu queimo o capitalismo”. Eu queimei as opressões.
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Então, caminhavam até o cestinho de fita, pegavam uma e diziam o que plantavam. “Eu planto o socialismo!”. Falou uma menina em tom de ordenamento. “Eu planto uma sociedade mais justa!”, ouvi outro alguém dizer. Eu plantei a alegria. Uma genuína alegria. Uma alegria em forma de respeito, de companheirismo, de alegria, de felicidade.
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Aquele nada mais era que um dos muitos ritos de passagem por que cruzamos durante a vida. Diz-se de tais ritos que costumam ser preparações individuais ou coletivas que visam marcar pontos de desprendimento, o abandono de velhas atitudes e preparar para outras vivências, novas aceitações, em outras palavras, uma nova sociedade.
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Ali foi encerrado um ciclo e, ao mesmo tempo em que foi um final, foi também o começo, afinal, princípio e fim estão bem mais envolvidos do que muita gente pensa, tanto que muitas vezes é difícil saber onde um nasce para dar lugar ao outro.
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Na segunda-feira desta semana tentei fazer a mesma mística de queimar navios com os novos estudantes de Comunicação. Mesmo as pessoas todas tão desconfiadas, cheias de angústias e, mais ainda, medo de tocar umas às outras, ainda que fosse um segurar de mão somente, aquela ocasião teve para mim um sabor especial. Para eles, o começo. Para mim, talvez um fim.
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Recepcionei muitas turmas. Umas quatro ou cinco, pelo menos. E aquela idéia de que aquela seria a última foi me deixando com um nó na garganta. A semana passou e ontem, na sexta-feira, fiquei vendo os novos amigos que fiz nesse tempo de caminhada e o quanto me apeguei a eles.
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Após pedir moedas no corredor, fomos ao mercado central negociar os ingredientes para aquele o ponche. Será o último? Cada coisa parecia tão única. Cada detalhe. As ruas, os risos, as pessoas, os sorrisos. Ainda não consegui me acostumar com a idéia de ter que ir à Ufma apenas algumas vezes por conta de minhas novas atividades.
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Sentei no chão, no escuro e ao som da banda. Respirei fundo e pensei que talvez, se o carro não tivesse ar-condicionado e a janela do carro estivesse aberta enquanto fazíamos o caminho para o mercado, eu poderia ter falado do cheiro da maré do Bacanga ou da brisa do início de fim de tarde e assim, quem sabe, essa história tivesse ganhado um tom mais poético.

sábado, 16 de agosto de 2008

Coisas pequenas

Foto por Jéssica Xavier

Enquanto tremia de frio e fazia contorcionismos para segurar com a mão molhada um pouquinho de cigarro, ela me falava sobre as pequenezas do mundo. Desta vez, descrevia com bastante encantamento a fotografia de uma amiga que flagrava uma formiga que, em meio a uma movimentada avenida da cinza São Paulo, não carregava em suas costas uma folha ou um pedaço de doce que algum distraído deixara cair pelo chão, mas sim uma guimba.
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Ao mesmo tempo, minha hiperatividade de pensamentos me permitia ver a lua bonita e nova, ouvir a música que tocava no aparelho de som pequeno, escutar a conversa do grupo que estava na outra ponta da piscina, sentir a sensação da velhice ao tocar meus bastante enrugados dedos das mãos e dos pés e, por fim confessar o quão perfeita era aquela foto e o quanto eu queria que sua autoria fosse minha. E assim, era mais uma pequeneza que ganhara proporções imensas.
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Dos detalhes, das manias, das coisas que poderiam passar desapercebidas mas que, por alguém ou algum motivo acabam por subverter esta lógica, lembro-me da apaixonante menina Amélie que, após ver um senhor chorar de alegria ao receber de suas mãos uma caixinha com brinquedos e figurinhas por ele perdida durante a infância, tem sua visão de mundo modificada e todas as suas ações empenhadas na realização de gestos que, mesmo pequenos, fossem capazes de tornar as pessoas mais felizes.
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Le fabuleux destin d'Amélie Poulain (O fabuloso destino de Amélie Poulain), filme francês dirigido por Jean-Pierre Jeunet em 2001, é um daqueles longas que a gente não se importa de assistir mais uma vez mesmo já tendo feito isso tantas outras vezes. É como se não se quisesse que aqueles 122 minutos acabassem. É como sentir saudade e querer tudo de novo mesmo já tendo se passado tanto tempo em frente à TV.
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Fosse para matar um pouquinho dessa interminável saudade ou apimentar ainda mais ela, descobri que baseada no enredo do filme existe a série Pushing Daisies. E aí a confusão foi outra. Dos nove episódios que compõem a primeira temporada da série criada por Bryan Fuller, eu simplesmente me recusava a assistir o último. Não queria imaginar que o gostinho doce e cheio de alegria, como das tortas recheadas com anti-depressivos, tivesse chegado ao fim.
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Em Pushing Daisies, aos 9 anos, 27 semanas, 6 dias e 3 minutos, Ned descobre que tem o poder de fazer algo retornar à vida utilizando-se apenas de um toque seu. A partir de então, as descobertas sobre esse que até então poderia ser considerado um dom, vão se dando de forma trágica. Sua mãe sofre um AVC e morre. O garoto não exita e lhe traz à vida com um toque. É então que se descobre que, se algo é trazido novamente à vida, após um minuto, e nenhum segundo mais que isso, algo equivalente deixa de viver para dar lugar à nova vida. E a vítima era o pai de sua amiguinha Chuck, sua paixão.
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Um pouco mais tarde, na hora de dormir, de um beijo de boa noite, Ned faria a mais dificil de todas as descobertas: o primeiro toque era capaz de fazer voltar à vida, mas o segundo significava o retorno à morte, e desta vez, para sempre. Ned então cresce e transforma-se no “fazedor de tortas”. Ao lado do investigador Emerson Cod, ele se utiliza da habilidade de dar a vida a alguém por um minuto, para desvendar crimes por recompensa.
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E é nesta atividade que ele descobre que sua paixão de infância, Chuck, fora assassinada aos 28 anos, 24 semanas, 3 dias, 11 horas e 51 minutos. Ele a toca uma vez. Passasse um minuto e outra pessoa perde a vida. Ned decidira não tocá-la pela segunda vez. Os dois vivem então, uma relação literalmente intocável. Qualquer contato, mesmo que por discuido, pode ser fatal.
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E mesmo exitando tanto em assistir o último episódio, para minha surpresa a primeira temporada não termina com cara de “fim”. Talvez seja porque a interrupção se deu por conta de uma greve de roteiristas. Tá bom, tá bom. Tudo bem. Reconheço as greves como um importante instrumento de luta e reivindicações. Mas, poxa... Aguardo assim a segunda temporada, já confirmada para setembro.
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Agonia, sutileza, carinho, alegria. Todas essas emoções despertadas por uma tela. Uma narração pefeita. Uma fartura de cores. Um cenário modesto. E o melhor de tudo: uma infinidade de coisas pequenas. Vontades, sensações, pensamentos, sentimentos. Tudo tão singelo. Certo. Evitarei dedicar as imagens tão bonitas ou a fotografia perfeita das obras aqui citadas. Mas, como são minhas as palavras deste texto, essas sim dedico às Amélies, Neds e Chucks, amantes das pequenas coisas, pessoas de quem tenho ouvido falar ou mesmo encontrado pelas ruelas de minha alegre vida.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Não tem ninguém ao lado

Poucas ou mesmo nenhuma vez o fato de acordar e não ter ninguém ao lado fez tanto sentido como em minha madrugada fria de dois domingos atrás. Voltando um pouco no tempo, alguns dias antes, se atravesso o chão azul da sala e sigo até a janela imediatamente oposta à parede onde se encontra meu espremido saco de dormir, tenho como prêmio a tão bela vista para a Baía de Guanabara.
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Afirmo ser um prêmio porque quando se está na extrema esquerda de um alojamento que tem sua porta localizada à direita, e quando todo o espaço interno é ocupado por uma infinidade unicolor de colchões infláveis, atravessar a sala pode ser uma tarefa árdua. É por essas e outras razões que costumo dizer que já não se fazem mais encontros como antigamente.
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Pensando bem, já nem sei se são os encontros que já não são mais feitos como nos velhos tempos. Talvez o problema todo esteja mesmo nos encontristas. Tenho saudade de quando os alojamentos tinham cores que não somente o azul, assim como sinto falta dos tempos em que os estudantes tinham um compromisso, mesmo que mínimo, e eram conscientes de seu papel dentro dos encontros.
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As fábricas de colchões infláveis podem, em breve, começar a produzir colchões de cores diferentes, a não ser que exista uma explicação científica para que eles sejam todos da cor azul. Mas, e as “fábricas” para encontristas diferentes dos que vemos hoje, será que existem? Será que as verei?
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Estávamos no 29º Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação, em Niterói, Rio de Janeiro. Estávamos? Quem estava? Antes do encontro, os estudantes reclamavam ou mesmo clamavam para que entre os painéis, mini-cursos, oficinas, núcleos de vivência, grupos de discussão, estudo e trabalho, os tão falados espaços “lúdicos” fossem garantidos.
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E foram! Aos montes. Diria até que nunca vi tantos. Tivemos até, em nossa grade, o chamado “turiscom”. Mas ainda assim, mesmo com tanto divertimento garantido, o que vi foi um grande descomprometimento das delegações da maioria dos estados. Ah, mas eu não posso querer muito, afinal, não dá para competir com o Rio, não é? Por que eu, estudante de co-mu-ni-ca-ção, vou ficar discutindo co-um-ni-ca-ção, se posso ir ao Pão de Açúcar, ao Cristo Redentor, ao Jardim Botânico, à Lapa ou mesmo assistir um jogo no Maracanã?
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Apesar disso, o encontro teve muita coisa boa. Para entender um pouco, a Enecos, nossa Executiva de Curso, estava há um ano e meio sendo coordenada por comissões gestoras. A primeira comissão foi formada em nosso Congresso Brasileiro, em janeiro de 2007 em São Paulo, e a segunda em janeiro deste ano, em Maceió.
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No entanto, esta estrutura nos trouxe uma série de problemas, uma vez que os estudantes que compunham (por auto-indicação) tais comissões, não tinham entre si um planejamento mínimo de gestão. Além disso, não existiu um projeto político comum que trouxesse a consistência necessária aos debates que deveriam nortear nossas ações enquanto estudantes organizados em uma Executiva.
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Nesse sentido tivemos alguns consideráveis avanços. O Enecom serviu para se pensar, discutir e planejar novas atividades para a Enecos para os próximos períodos. Nos espaços, apesar de poucos, os novos estudantes participaram bastante e se comprometeram de tal forma que já podemos notar trabalho em algumas de nossas tantas listas de discussão.
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Além do mais, aproveitei a oportunidade para rever a família, abraçar apertado alguns dos meus bons e saudosos amigos, reviver antigos sentimentos e experimentar novas sensações, como um encontro inesperado no banheiro durante uma madrugada, deitar na grama, admirar o céu e pegar sol depois do almoço ou matar o final de uma roda de diálogo para ver, do corredor do andar de número 3 do bloco “N”, o pôr do sol alaranjado do Gragoatá.
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A parte sentimental da minha saga foi o frio que fez nos dois últimos dias. Principalmente no último. Lembro-me daquele burlesco conselho de centros e diretórios acadêmicos, aquele em que o cantor de um grupo de samba pegou o microfone para dizer que não estávamos com nada. Lembro-me, também, das cobranças que fiz... Da figurinha de chocolate que ganhei... De meu rosto, mãos e pés bem gelados... E de minhas (até então não sabidas) últimas palavras ao sair da tenda à procura de um pouco de calor no alojamento... Dormi.
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Só eu sei o susto que levei quando dei por mim, às 4h de uma madrugada fria, no cantinho mais apertado daquele alojamento. Na rapidez que virei para o lado, meu coração disparado e já em mil pedaços parecia querer encontrar alguém. Vários “alguéns”. Meus amigos estavam com saídas marcadas para as 23h... 2h... 3h... Uma ou outra saída atrasou, então pude me despedir de algumas poucas pessoas... Estou ficando velha, e a cada encontro a despedida fica mais difícil.
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Lágrimas, o fim do encontro chegou... E com ele, os encontristas. Desta vez, para me consolar... São meus amigos... Recolho o meu saco de dormir, que não é azul, e todos os colchões são esvaziados. Estou de volta à minha casa. Alguém tem contato para sugestões de alguma fábrica de colchões infláveis?

terça-feira, 1 de julho de 2008

Lembranças do meu São João

Por estes dias, deixei as cores do meu zine para me dedicar a outras cores. Foram fogueiras, estrelas e bandeirinhas todas coloridas em diversos tons. Vermelho, amarelo, cor de laranja, verde e azul entre tantas outras tonalidades misturavam-se, de forma única, a outros muitos sentidos.
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Eu, ser nostálgico que sou, não poderia me furtar da sensação que é poder compartilhar boas lembranças de minha não tão velha infância. Paro então e recordo que há mais ou menos quinze anos, o nordeste recepcionava minha família e eu desta forma tão alegre, carinhosa e acolhedora que chego a suspeitar que, de forma igual, não seja em nenhum outro lugar.
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Não havia quem nas bandas de cá chegasse e não desse um pulinho que fosse no famoso Ceprama. Foi lá que descobri que, algumas vezes, quando não estão sozinhas, as cores podem ser bem mais marcantes. Percebi que em meio aquela aquarela havia uma infinidade de sons: orquestras, matracas e pandeirões traziam alegria aos ouvidos e aos pelos do corpo, muita vibração.
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Do corpo é despertada também a fome e daí, a vontade é de comer todas aquelas comidinhas boas que nunca entendi porque só aparecem nessa época. Não sei se é uma espécie de máfia montada pelas danadas das quitandeiras, que resolvem dar sumiço à gostosuras como canjica ou mingau de milho, bolo de tapioca ou de macaxeira. Um dia ainda desvendo esse mistério.
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Como quando se chega perto de quem se gosta e se respira bem fundo, o cheiro que se sente agora é de bombinha, de chuveirinho, de rojão. E é criança gritando, e é menino correndo e é poeira subindo, porque arraial que era arraial, pelo menos naquela época, tinha que ter poeira. Nem que fosse das pedrinhas britas feitas especialmente para estalar as tais bombas de estalinho.
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Quanto às crianças, tudo era muito bem pensado nas festas de São João. Quando tem boi se apresentando, as crianças sentam bem na frente, na beirada da roda, e se encantam com a habilidade dos vaqueiros ou ar misterioso que só os cazumbas têm. Nunca entendi como é que uma criatura tão feia conseguia de mim retirar, ao mesmo tempo, medo, graça e encantamento.
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E quando a apresentação terminava, ao palco subia um animador para comandar, lá do alto, as brincadeiras infantis. E foi assim que eu, uma tradicional canceriana, a menina tímida que em outra ocasião quase morrera afogada em uma bóia levada pela correnteza, por vergonha de pedir socorro, me vi em cima de um palco a cantarolar para uma multidão.
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“Eu vou dar uma revistinha da turma da Mônica para a criança que vier até o palco e cantar uma música do Boizinho Barrica! Quem vai ser a criança?”, dizia e repetia o animador com uma empolgação que talvez somente ele mesmo tivesse. Como eu fui parar lá, realmente não sei. O que sei é que até hoje me recordo daquela vozzinha pequena que tomava conta do arraial ao dizer “lua lua cheia / que bate no meio das águas / que brilha na ponta d’áreia!”.
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Foi um sucesso! Foi minha primeira exibição em público e foi também minha primeira revistinha. Eu a li e reli tantas vezes que nem mesmo ousaria arriscar quantas foram. É surpreendente tentar entender como todos os anos essa mistura de cores, sons, gostos e sentimentos me fazem reviver as mesmas lembranças que aquela menina mufina e de voz tão pequena me fizeram descobrir. Não que hoje eu fale grosso, mas isso já é assunto para uma outra história...

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Na carona do Baleiro

Me inquieta não poder saber de onde é que vem essa mania que as pessoas têm de achar que as coisas simples não são surpreendentes. Certa vez ouvi dizer, e muito concordei, que um bom texto é aquele que consegue fazer relações entre objetos aparentemente distantes de uma forma simples e, ainda assim, surpreendente.
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Acrescentaria ainda que, no caso dos textos, existe uma espécie de recompensa aqueles que acompanham passo a passo as obras de um determinado autor. Esta recompensa, por sua vez, está em conseguir perceber que determinada parte do texto só tem, para ti, aquele sentido por conta da tua dedicação, daquilo que te permitiu montar um repertório.
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Com a música não poderia ser diferente. Letras boas são as que aproximam objetos originalmente distintos e que presenteiam aos mais dedicados e atentos, com letras que se completam a todo instante. Sendo assim, depois da deixa do último texto, não poderia deixar de falar dele, o Zeca Baleiro.
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São brilhantes aquelas sacadas, aqueles sons coloridos, confortantes ou doídos, cheios de sentimentos. Marcantes são também as rimas, ou mesmo a ausência delas e os trocadilhos. Mas aqui falarei delas, as letras que são soltas e se entrelaçam sem parar. Ou nunca perceberam?
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Em Babylon, o baleiro reclama não ter dinheiro para pagar a Yoga, a droga ou mesmo a merenda. Cansado da situação, promete vender sua própria alma ao dizer: “cansei de ser duro, vou botar minh’alma a venda”. E o desfecho dessa história toda de fazer da alma o segredo do próprio negócio está em Baladas do asfalto, quando diz “a algum tempo atrás vendi minh’alma a um velho apache”.
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Ainda curtindo as baladas do asfalto, lembram que já comentei por aqui sobre o fato de ele levar no bolso um trocado para o café? Pois bem, por algum motivo que ainda preciso compreender verdadeiramente qual foi, alguém lhe ofereceu uma xícara e ela foi recusada. E tudo isso aconteceu em Bandeiras, com “não quero beber o seu café pequeno”. Tá, tudo bem, se não quer café, então pode ser alguma outra coisa, certo? Engano, pois a resposta vem logo em seguida: “eu não quero isso, seja lá o que isso for!”.
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E como falar dele e não pensar nas letras que falam de solidão? Muitas, não? So, let's go! Em Por onde andará Stephen Fry, procura-se alguém que saiu de casa e que no lugar antes ocupado deixou um vazio de solidão: “Stephen may be feeling all alone, Stephen never do this again, came back home”. Então, ao que tudo indica, o alguém que saiu de casa, resolveu mandar notícias, ou melhor, um Telegrama, deixando quem estava “só, sozinho... mais solitário que um paulistano” com o coração cheinho de felicidade.
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A angústia toda da solidão pareceu ter realmente chegado a seu fim quando descobriu-se que o gosto da fruta passa quando se vê alguém que se ama passar em Skap por meio de uma declaração explicita em: “você me faz parecer menos só, menos sozinho”. E assim, é tombo que não é medido novamente em Bandeiras ou tombo que nem mesmo chega a acontecer porque se é nordestino bem alimentado, em Tv a cabo.
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Muitas coisas. Poderia falar sobre muitas delas. É que andei pensando sobre o que escrever em meio a estes dias tão aperreados. Então, imaginando formas de pintar com tinta alguma tela cinza, atrelada à deixa que outrora por aqui deixei, decidi falar sobre ele, ou melhor, sobre as letras criadas por este maranhense tão genial. Críticas sociais e poesias musicadas fizeram com que tantas outras pessoas e eu tivéssemos por ele tanta admiração.

domingo, 8 de junho de 2008

Os sinais estão fechados

Nem todas aquelas cores são primárias. São intensas, são riscadas, são efêmeras ou demoradas. Uma te deixa seguir, outra te desperta a atenção e outra, um vermelho vibrante, forte e por pouco não saltitante, te faz parar bem ali, no calor daquele chão. Mas quem sou eu para falar de sinais?
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Talvez eu seja o menino que cheira cola para passar a fome, a vendedora de água com sede ao sol ou o malabarista que joga ao alto suas claves enquanto se equilibra em um monociclo e dos carros tenta roubar alguns segundos da atenção. Talvez eu tenha fome, talvez eu tenha sede, talvez eu brinque de equilibrar coisas no ar. Talvez eu seja todos eles ou quem sabe, nenhum.
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Já usei os sinais para falar de diversidade, de velocidade, de cores, mas o mais interessante é a concepção que cada um tem sobre este símbolo. Para a maioria das pessoas, afirmar que "os sinais estão fechados" significa algo negativo, um impedimento. Isto se evidencia nas letras de Elis Regina em "os sinais estão fechados para nós que somos jovens" ou nas de Adriana Calcanhoto em "cariocas não gostam de sinais fechados”.
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Mas, embora eu tenha algo muito próximo de paixão pelos trabalhos das duas cantoras, sou muito mais adepta da idéia totalmente oposta daquele que é, para mim, o maior e verdadeiro ídolo, o Zeca Baleiro. Quando ouço “os sinais estão fechados” em meio a suas palavras aquareladas, entendo o ir de encontro ao que propõe a palavra “fechado”, bater de frente com a idéia de negativo, de impedimento, de inércia.
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Em Baladas do Asfalto, quando o Baleiro fala “os sinais estão fechados” existe algo que está para além do trocado carregado no bolso para o café, descrito no trecho que vem logo em seguida. As frases estão invertidas e pouca gente entende é que, na verdade, “os sinais estão fechados” pode dar lugar a “me dá um beijo, meu amor”.
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Pode até parecer confuso, mas seguindo esta linha de raciocínio podemos dizer que quando os sinais estão fechados, as pessoas podem se beijar, se elas se gostam e se elas não precisam mais prestar atenção ao seu redor, uma vez que “tudo parou”. Ou, como a idéia é a de subverter esta lógica, estamos falando exatamente o contrário: quando os sinais fecham e os carros param, a vida começa e o mundo segue adiante.
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É fato que tenho vivido nos sinais. Não sei como costuma ser em outras regiões, mas aqui no nordeste, os pedágios para arrecadação de dinheiro para que algumas atividades relacionadas ao movimento estudantil sejam viáveis, é uma prática cada vez mais comum. Desta vez, queremos ir ao Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação que acontecerá em Julho, no Rio de Janeiro. E a saída? Como diz o baleiro, “vou pisando o asfalto entre os automóveis”.
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Apesar do cansaço, do sol e de alguns “não”s em tons bem mau-humorados, o balanço final dos pedágios é sempre animador, uma vez que qualquer quantia é lucro. E daí que é um problema porque vira um vício e não se pode mais ver nenhuma simples fila de carros parados que já se pensa em arrecadação e mais arrecadação.
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Sem contar ainda que, por ali, acontecem coisas no mínimo interessantes, como os gritinhos finos e alucinados daquele pedacinho de gente ao ver que aquela pessoa estranha e com três bolinhas coloridas nas mãos tomava distância. Ou ainda o casal que, a princípio, não queria abaixar o vidro da janela, mas que se inundou em risos ao ver minha tentativa embaraçada de fazer uma mímica através do fumê. Isso me rendeu todas as moedas de cinco e dez centavos existentes no carro e, mais que isso, me fez ganhar o dia.
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Certamente a gente leva aquilo tudo como uma grande brincadeira, mas o fato é que esses dias têm sido interessantes para que eu passasse a admirar as pessoas que tiram daquelas luzes o seu sustento. Não as que pedem e somente pedem, porque desta prática eu discordo e esta é uma outra discussão.
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Sendo assim, ofereço este texto a estas pessoas e aos meus amigos e amigas estudantes, especialmente os daqui de São Luís, os de Teresina e os de Fortaleza que, mesmo sob o sol forte ou com os pés cheios de calos doloridos, conseguem estampar no rosto um sorriso e encarar aquilo que para muitos é uma parada, como o início. "Vamos nessa, gente? O sinal fechou!".

sábado, 31 de maio de 2008

Gamei no Gamar

Foto por Paula Camily

Gamar é verbo ora transitivo indireto ora intransitivo que, segundo o dicionário, pode ser traduzido como paixão ou encantamento. Popularmente falando, é ficar louco, alucinado, com os quatro pneus arriados. Pouca gente sabe, porém, é que mais que um verbo formado por cinco letras, gamar tem também um sentido que se refere à transformação.
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Gamar é a sigla para Grupo de Arte Maria Aragão, que nasceu há sete anos no bairro da Cidade Operária. Atualmente o grupo é composto por trinta e cinco pessoas com faixa etária entre dois e vinte e cinco anos, que trabalham a arte como forma de transformação de uma difícil realidade.
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O idealizador do grupo, Wilson Chagas, na época professor de Educação Artística da escola Unidade Integrada Maria José Aragão, conta que, em suas aulas, começou a perceber que os estudantes tinham verdadeira aversão à disciplina que ensinava, além de uma grande dificuldade de leitura.
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Percebido tal problema, uma alternativa encontrada foi a de trabalhar a interdisciplinaridade. E assim, a sintonia causada pelo trabalho conjunto entre as disciplinas de Arte, Língua Portuguesa e História permitiu aos estudantes compreensão, contextualização e interpretação de situações diversas. Nascia então o primeiro recital de poesia da escola, o Palavras ao Vento.
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As crianças se envolveram de tal forma na atividade que foram convidadas a mostrar seu trabalho em um evento acadêmico de Letras, sendo em 19 de abril de 2001 a primeira apresentação oficial do grupo. “Foi muito tocante saber que muitas daquelas crianças nunca haviam sequer passado da ponte do São Francisco. Durante o trajeto que fizemos no ônibus, olhando a reação delas e ouvindo seus comentários, percebi o quanto elas haviam aprendido com aquela experiência.” Conta Wilson.
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Notou-se então a necessidade de dar uma identidade aos que haviam se destacado naquela atividade, o que viria a originar o Gamar. Wilson conta que no início houve muita dificuldade em continuar aquele trabalho, uma vez que, a própria administração da escola caracterizava como tumulto o projeto.
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Após sua implementação, verificou-se que a mudança na dinâmica da escola se dava de forma positiva, uma vez que serviu para despertar talentos e, mais ainda, pelo alcance que havia ganhado. Assim, o que teve início com um recital virou um Festival de Poesia, o Poemar, que este ano vai para sua oitava edição.
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Em 2003 o Gamar chegou a ganhar todos os prêmios do Festival Maranhense de Teatro Estudantil com o espetáculo Sonho de uma noite de verão, de Willian Shakespeare. Hoje, o grupo domina técnicas de circo, teatro e dança e apresenta espetáculos como Receita para se obter uma boa mãe, com palhaços pequeninos e lindas bailarinas e suas roupas coloridas; Baião de Dois, com dança do côco e outros ritmos regionais; O desejo de Catirina e um dos destaques, a quadrilha teatralizada, onde a ausência da fala é suprida pela construção cênica do ato do casamento e ainda .
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Wilson conta que gostaria que o Gamar pudesse acolher outros tantos integrantes, mas que dificuldades de ordem financeira e estrutural impedem que isso seja feito. Gastos com figurino, transporte e alimentação dos participantes em dias de espetáculo são pagos com sua renda pessoal. Tais limitações têm impedido o sonho e a necessidade de profissionalização do grupo, que utiliza o salão paroquial da Igreja São João Calábria para montar seus espetáculos.
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Mais que uma atividade de voluntariado, o trabalho desenvolvido pelo Gamar é de transformação social, uma vez que tem feito despertar uma cultura de troca de experiências e possibilitado, por meio da arte, a construção de uma nova e positiva identidade cultural para o bairro da Cidade Operária, tão marcado por seus inúmeros problemas sociais.
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Desta forma, acredito que um significado para Gamar esteja além das palavras encontradas nos dicionários. Aqueles sinônimos são poucos quando o que se quer expressar são, na verdade, sentimentos. Sentimentos esses tão evidentes no brilho dos olhos, nas expressões corporais e nas palavras daqueles que compõem o grupo e que são orgulhosos de seu trabalho. Sendo assim, fico com a definição que o grupo leva como lema, a que diz que “Gamar é arte e amor em excesso”.

domingo, 18 de maio de 2008

68 para ser sentido

Por mais que eu tivesse tentado, nunca consegui explicar com palavras determinados sentimentos. Um frio te toma as pernas, ganha o alto da barriga e enquanto a boca seca, não mais saliva, os olhos se umedecem com lágrimas e os pêlos dos braços e da nuca suspendem como se quisessem saltar do corpo.
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Era assim quando criança: bastava ouvir uma música, assistir um filme ou ler algo relacionado às lutas populares ou revoluções, que todos aqueles sentimentos me vinham com uma força cada vez mais crescente. Foi então quando comecei a me questionar sobre a origem da força e da vontade que algumas pessoas têm em defender determinadas causas.
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Entre todas as possíveis respostas que meus pensamentos trouxeram sobre este questionamento, decidi ficar com aquela que, pelo menos aparentemente, pode ser vista por alguns como a mais simples ou mesmo a mais infantil de todas elas: a da pequena semente.
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Acredito que cada pessoa tenha dentro de si um montão de sementinhas. Estas, por sua vez, precisam tomar sol, serem regadas e bem cuidadas para que cresçam fortes. E um-montão-de-sementinhas são, pelo menos em minha cabeça, uma porção de sentimentos. Por que é então que com o sentimento revolucionário as coisas seriam diferentes? Não tem mesmo por que.
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Manifestações, atos de coragem e de luta por uma coletividade seriam então o sol, a água e os cuidados dessa semente que alguns trazem desde cedo dentro de si, como aqueles jovens estudantes que, há 40 anos, sem distinção de etnias, culturas, idade ou classe, tomaram as ruas do mundo para lutar por direitos, levando o país a uma greve geral.
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O maio, que por muitos é somente lembrado como o mês das queridas mães ou das bonitas noivas, foi também em 1968, um mês marcado por lutas em prol de transformações sociais, culturais e políticas. Foi o mês em que em uma única manhã, mais de um milhão de pessoas foram às ruas de Paris em solidariedade a um movimento estudantil combatente e reprimido por forças policiais francesas.
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Quarenta anos depois, a mesma reforma do ensino superior que serviu para mobilizar os estudantes do maio francês, foi o que pareceu despertar o movimento estudantil brasileiro da inércia vivida nos últimos anos. A diferença? Hoje, somos poucos, fragmentados e muitos até mesmo descrentes de que uma revolução seja realmente possível. Eu sonho e acredito em uma revolução. Precisava falar sobre isso hoje. Gostaria que o maio de 68 pudesse não somente ser lembrado, mas sim, de alguma forma sentido.
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Coincidência ou não, no início do ano em que a mais bonita das revoluções completa suas bodas de rubi, foi quando a sementinha que carrego, desde a infância, dentro do meu coração vermelho, pôde receber a sua maior dose de sol, água e cuidados. Mas, essa parte deixo para contar em outra oportunidade. Por enquanto, termino com a sensação de que realmente não sei falar de sentimentos e com uma frase que penso que expressa muito o que sinto.

"Eu tenho a paixão das causas difíceis, quase perdidas, quase desesperadas." Daniel Bensaïd

domingo, 11 de maio de 2008

Bi bi bi biiiii

No início de minha infância, quando comecei a compreender as coisas que se passavam ao meu redor, descobri que queria ser pediatra. Talvez porque eu tivesse me encantado com aquele doutor tão gentil e velhinho, cujo consultório tinha em sua parede um quadro com um palhaço e seus balões coloridos em frente a um circo. Mas isso passaria logo, especialmente quando eu descobrisse que o que eu realmente queria ser quando crescesse era motorista de ônibus.
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O fascínio das coisas habita exatamente na simplicidade e, para mim, o ato de dirigir era simplesmente fascinante. Poderia passar horas e horas a observar alguém dirigindo. Mas nem tudo era tão simples assim, afinal, como fazer para o carro dar a ré? Confesso que muitas vezes sonhei estar dirigindo e ter encontrado o tal do botão que além de secreto era vermelho. O botão que fazia o carro dar a ré. Acordava, corria para a garagem da casa de vovó, entrava no carro, e... Cadê o botão? Aquele que eu vi no sonho? Não existia. Alguém deve ter tirado ele de lá enquanto eu dormia.
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Eu queria dirigir, mas não sabia dar a ré. A solução para o meu problema encontrei decidindo, de uma vez por todas, que eu seria motorista de ônibus quando crescesse. Afinal, os ônibus não precisam dar a ré! Pelo menos na minha cabeça infantil eles não precisavam. Anos depois, quando já não mais pensava em ganhar a vida dirigindo ônibus e já sabia como se fazia para dar a ré em um carro, descobriria que os ônibus às vezes também precisam dar uma andada para trás.
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Resgatando esta lembrança e algumas outras recortadas e coladas em algumas conversas, descobri o quanto os ônibus estiveram presentes em minha vida até aqui. Ou alguém esqueceu, por exemplo, que na pré-adolescência eu seria a menina que tinha vergonha de puxar a cordinha para pedir parada? Só para se ter uma idéia de até onde vai essa história toda entre os ônibus, a timidez e eu, conto até que já caí dentro de um deles, e pasmem: caí porque achava que segurar nos ferros chamaria atenção dos passageiros enquanto me dirigia até a porta de saída. E acreditem, minha queda não foi nada discreta.
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Já peguei ônibus errado, também. Vários deles. Pegar ônibus errado era quase que uma rotina. Mas a mais traumatizante de todas as vezes foi aquela em que eu fui parar sozinha no ponto final de um bairro estranho e desconhecido. Todas as pessoas desceram, a cobradora desceu e o motorista desceu, também. Eu, como sempre muito discreta, resolvi esperar enquanto eles retornavam. Escurecia e, como se não bastasse, o motorista veio caminhando para o ônibus, mas não foi para sair e sim para apagar a luz. Ninguém me viu lá dentro. Para não me estender, não contarei mais detalhes desse momento angustiante por aqui, mas acreditem, o desfecho também não fora nada discreto.
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Isso me faz concordar com um amigo que diz que o que mais chama a atenção nos tímidos é seu excesso de descrição. Fiquei me imaginando sentada na terceira cadeira do corredor, na fila esquerda do ônibus. De repente, entra uma senhora. Então, diante daquela situação, eu levanto e começo a discursar em voz alta:
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/Atenção senhores passageiros! Neste exato momento eu, cidadã consciente dos meus direitos e deveres, abro mão do meu confortável lugar neste coletivo para que esta senhora, na verdade esta anciã, sofrida por ter vivido tantos anos de vida, possa se sentar e seguir sua viagem de forma tranqüila e prazerosa. Eu poderia estar matando, poderia estar roubando ou poderia estar olhando para a janela e fingindo que não a vejo, mas não! Estou aqui cedendo meu lugar a ela. /
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As pessoas do ônibus batem palma, jogam confetes, tiram fotos e eu fico sendo conhecida como o exemplo de jovem educada e cidadã. Tsc. Que cidadã que nada. Essa tal de modinha de cidadania. Até parece. Paremos de imaginar. Eu levanto, não pergunto se a senhora deseja sentar, vai que ela seja tímida, também e fique com vergonha de falar, nunca se sabe. Sigo para a porta traseira do ônibus, como se fosse descer na próxima parada. É melhor assim. Mesmo que ainda faltem centenas de outras paradas e eu ainda precise ficar algumas horas dentro daquele que poderia ter sido meu local de trabalho.

sábado, 3 de maio de 2008

O zero notável

Em uma terra engraçada, onde árvores têm raízes quadradas e em meio a tantos naturais, inteiros, racionais ou não, vivia ele, o número Zero. Jovem, sempre muito discreto, quase nunca notado, o zero fazia com que os outros tantos números, meninos ou meninas, não percebessem a insatisfação que o tomava.
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Meninos ou meninas porque, na verdade, os números pares, com exceção do zero e do oito, que são rapazes, são todos do sexo feminino; assim como os números ímpares, com exceção do nove, porque eu nunca soube, na verdade, qual era a dele, são todos do sexo masculino. Mas este não é o real foco desta saga.
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O fato é que o zero morava em sua humilde casinha de parede de lápis, chão de borracha e teto de tabuada, localizada no Conjunto Universo, o que fazia dele um alvo constante de piadas por parte dos moradores, uma vez que as regras estavam claras e bem escritas naquela placa feita de régua que ficava no início da avenida principal com a seguinte inscrição: neste conjunto o denominador nunca pode ser zero.
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Pelas redondezas do Conjunto Universo havia um trio de playboys, composto pelos bonitos, mas nada educados, rapazes um, sete e um, que não perdiam uma oportunidade sequer de chatear o coitado do zero. Era um tal de “vamos dar uma voltinha” para cá, “vamos dar uma voltinha” para lá e essa situação toda se agravou ainda mais quando o zero resolveu militar na esquerda, afinal, o que poderia ser mais desprezível ou sem valor que um zero à esquerda?
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Nunca entendi direito essa história toda de “casal vinte”, mas fiquei imaginando, nesta situação, o dito romance e uma belíssima senhorita número dois a comunicar seu pai sobre seu namoro com o aqui descrito zero. “Quem? O zero? Aquele esquerdistazinho de meia tigela? Mas não mesmo, minha filha! Diga a esse rapaz que se ele for para a direita e de quebra conseguir uns parentes que o siga, a gente pode até conver$ar.”
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E aquela conversa toda já ganhava tons de sermão por parte daquele grande e robusto pai número oito, que só não era maior porque não se consegue escrever números em caixa alta. “Por enquanto, para mim e para todos os outros números por aqui, o zero não passa de um zé-ninguém! E além do mais, minha filha, ele é gordinho! Suspeito que você esteja andando com essas letrinhas ‘i’ em itálico, tem tomado atitudes que lhe fazem parecer um número complexo!”
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Como poderia então ser o zero um produto notável se, ao ser multiplicado por ele mesmo, punha em cheque qualquer tentativa de cálculo do quadrado da soma de dois termos? A resposta estaria ainda no campo dos símbolos, mas dessa vez, na esfera literária.
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E foi assim que o zero tomou a mais radical de suas atitudes: subiu no topo de um triângulo isóscele, atirou-se do alto e da luta não se retirou, negando assim sua própria classe enquanto número. Seguiu então para o alfabeto e foi viver todos os demais e infinitos dias de sua vida com o notável título de letra “o”. Sendo assim, necessito fazer com que todos saibam que a letra “o” não é uma letra, mas sim um número, na verdade, um zero liberto e feliz, e que rosquinhas são deliciosas homenagens a essa história de luta.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

A revolta dos cravos

Sempre gostei mais de Matemática que História. Pensando bem, não sei se sempre, mas se faço referência à minha saudosa época de estudante de Ensino Fundamental, esta primeira afirmação é muito pertinente. Fui eu quem, na 8ª série, em meus primeiros dias de aula naquela nova escola, tomada por uma falta de noção ou, quem sabe, por um excesso de sinceridade, levantei a mão quando aquele professor bonito e tão queridinho pela maioria das estudantes, perguntou se havia alguém na turma que não gostava daquela matéria que ele lecionaria.
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Enquanto meus pensamentos me traziam essas lembranças históricas e meus dedos folheavam minha agenda colorida, descobri que hoje, 25 de abril, comemora-se a Revolução dos Cravos. Parei um segundo e tentei tirar, ainda da lembrança, o que poderia ter sido esse marco. Sabia que não tinha faltado a aula, até mesmo porque eu era CDF demais para fazer isso, mas o fato é que realmente os arquivos da minha mente pareciam indicar que “a página não pode ser exibida”.
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E como imaginar, na maioria das vezes, pode ser bem mais divertido que pesquisar, coloquei-me nesse “dificílimo”, “cansativo”, “doloroso” e, por que não dizer “árduo”, exercício. Opa! Então vamos lá. Recebi uma prova, na verdade, uma folha quase toda em branco, que em seu topo diz o seguinte: “Discorra sobre a Revolução dos Cravos”. Gente, como é que alguém fala isso assim, de forma tão fria, tão direta e sem fragmentos ou figurinhas que, ao serem xerocadas, ganham tons de psicodelia? Vamos lá.
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Debaixo de uma sacada localizada na pacata Vila do Amendoim, distante cerca de 357 km da capital do monárquico país cujo nome prefiro não citar por uma questão de preservação das identidades envolvidas, o Cravo brigou com a Rosa. O fato de o Cravo ter saído ferido e sua companheira despedaçada, nem de longe é motivo para especulações que levem a crer que os dois tenham se agredido já que o casal era conhecido em campos e canteiros por pregar o combate às opressões e a resistência pacífica como forma de luta.
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O Cravo e a Rosa eram de oposição e, o que pouca gente sabe, na verdade, é que essa história toda de briga entre os dois teve início por conta daquela rainha pra-lá-de-fofoqueira que, além de ser a dona da moradia em que ficava a sacada que ficou conhecida em canções infantis do mundo inteiro, era também dona da maior rede de comunicação daquela época. Logo, muito esperta, viu naquela que era uma conversa em tom de revolta entre o casal, seguida de um desabamento, um prato cheio para o espetáculo e, conseqüentemente, grandes níveis de audiência. E parece que deu certo, pois nas floriculturas da região ouvia-se um “zumzumzum” e, acredite, não eram das abelhas.
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Imaginei algumas outras milhões de coisas, mas como pesquisar é preciso, também, acabei descobrindo por pura curiosidade que esta revolta, também conhecida como O Dia D (Democratizar, Descolonizar, Desenvolver), ocorreu em 1974 e significou o fim da ditadura de Salazar, em Portugal.
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Portugal vivia em regime ditatorial desde 1926 e, com a Revolta dos Cravos, liderada por soldados revoltosos, conseguiu por fim na censura e na polícia política que perseguia e reprimia todos aqueles que fizessem oposição ao regime, libertar presos políticos, fazer com que sindicatos pudessem atuar de forma livre e os partidos fossem legalizados e, um ano depois, em 1975, a realização das primeiras eleições livres para a Assembléia Constituinte.
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Na manhã do dia do golpe, muitas pessoas foram às ruas em solidariedade aos soldados. Uma das versões contadas é de que nesta manhã, uma florista contratada para levar cravos para a abertura de um hotel fora vista por um dos soldados que teria então pegado um dos cravos e posto em sua espingarda. A florista, distribuiu seus cravos vermelhos aos demais soldados que, rapidamente, puseram em suas espingardas, também.
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Não entendo por que nenhum professor ou professora nunca me pediram para discorrer sobre a Revolta dos Cravos, aquela que ficou conhecida como a revolução que trouxe liberdade ao povo português. Outra coisa que também não entendo, é como alguém que, de tão tímida tinha vergonha até mesmo de puxar a cordinha do ônibus em pedido de parada, pôde levantar a mão naquele primeiro dia de aula.

sábado, 19 de abril de 2008

Pintos reloaded

Confesso que antes mesmo de ter postado o "Pintos de amor", me percebi tomada por um sentimento que me era, no mínimo, angustiante. Minha hiperatividade de pensamentos estendida aos caracteres me havia feito deixar de lado uma série de detalhes relacionados aos pintos. Algo completamente inadmissível se levarmos em consideração o fato de que tais detalhes foram fundamentais para que os demais pensamentos fossem desenvolvidos.
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Poderia começar diferente, por exemplo, a dizer que eu nunca tive um pinto. Isso pode parecer estranho, óbvio ou mesmo, para algumas pessoas, algo difícil de ser compreendido, afinal, como pode alguém, nunca ter tido um pinto? Os pintos são seres graciosos e, independentemente de qual seja sua data de nascimento, são também do signo de Câncer, isso explica a belíssima letra de uma por pouco não-clássica música que dizia sabiamente que “o pinto quando nasce, ele dorme de baixo da mãe”.
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Após o nascimento e com o passar do tempo, é natural que os seres vivos cresçam. Com o pinto não poderia ser diferente. Mas, sendo muito sincera, somente aos 18 anos descobri que o pinto não poderia ficar de fora dessa lógica. Por mais óbvio que possa parecer, jamais havia parado para pensar que pintos viravam galos. Só pude descobrir isso graças a uma amiga que questionou o que faria caso fosse presenteada com um pinto quando ele crescesse. Após alguns segundos sem nada falar e com uma surpresa aparente, minhas palavras foram: “Como assim ‘quando ele crescer’?”. Senti, naquele momento, que um pedaço do meu mundo se desfazia.
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E assim como as tantas milhões de Carols contempladas em músicas dos mais diversos gêneros, em se tratando de musicalidade, os pintos nunca ficaram de fora. O cenário “pintístico” é bem vasto, temos letras que vão desde a singeleza na descrição de sua cor amarelinha e de seu tamanho que, de tão pequeno, cabe na mão, a relatos que exigem mais fôlego, como por exemplo, a saga do pinto do pai de um tal cantor que resolveu fugir com a galinha de sua vizinha.
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Já tivemos também pintos atuando na telona dos cinemas, ou como não lembrar do Galinho Chicken Little, o pinto que fez de um tudo para recuperar sua reputação após ter causado um verdadeiro pânico na cidade por ter confundido uma avelã com um pedaço do céu que, segundo ele, estava caindo e tem, ao mesmo tempo, em suas mãos, ou asinhas, seja lá como for, a possibilidade de salvar o mundo.
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E, como ninguém pinta como eu pinto, posso aproveitar também para falar dos pintos que são coloridos. Diria até que não somente dos pintos, mas também dos poodles, assim sendo, seja aquela caixa cheia de bolinhas fofinhas, todas coloridas à venda nas calçadas ou aquelas quase-feras a lado com suas madames a passear pelos calçadões. Sou apaixonada por cores, mas confesso uma indignação tão grande ao ver determinadas cenas. Um dia ainda me junto a alguns “coloridos”, pego uma madame dessas de refém, pinto ela dos pés à cabeça, amarro em uma coleirinha e passeio dentro de um shopping. Eu tenho pena dos pintinhos...
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E, para fechar com chave de ouro, gostaria de saber quem, na época da escola, por mais comportado que pudesse ser, nunca piou ao ouvir a professora já com suas últimas forças suplicar em tom de ordenamento que não queria ouvir nem mesmo um “pio”? Irresistível, não? Sendo assim, se de médico e louco, cada um tem um pouco, porque não dizer que de pinto, também?

sábado, 12 de abril de 2008

Pintos de amor

Dizem que quando algum dos sentidos nos falta temos esta carência recompensada em alguma outra habilidade. Um exemplo disso são pessoas de visão comprometida e que, em contrapartida, têm audição ou tato tão sensíveis que são capazes de reproduzir aquilo que, teoricamente, não poderia ser visto. Mas, como para toda regra há uma exceção, eu diria, e com bastante propriedade, que esta teoria não se aplica às pessoas com miopia.
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Ou, como explicar os dezenove mil e setecentos individuos que afirmam não escutar quando estão sem óculos? Nós, míopes, além de sermos dependentes de lentes que, de acordo com a Física, são capazes de nos deixar com olhar de peixe morto, temos esta dependência relacionada não somente à visão, mas também à nossa capacidade de audição e compreensão.
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E se esta tal compreensão estiver relacionada à questões musicais, por exemplo, é aí que o bicho pega, ou melhor, é aí que a banda toca. Para se ter uma idéia, sempre gostei muito de cantar e jamais me furtei de fazer isso por aí mesmo sabendo que não tenho voz de cantora pop, o mínimo daquilo que nos programas de auditório os “críticos” chamam de “presença de palco” ou ainda pelo fato de não compreender algumas boas e importantes partes de determinadas músicas.
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Fã de Cazuza desde pequena, demorei mais de quinze anos para entender que o exagerado, como prova do amor que sentia, fosse capaz de largar, além de carreira e dinheiro, o seu merecido canudo. Para mim, que fosse algo como “bururu” ou qualquer outra coisa que, quando resmungada, tivesse uma sonoridade parecida.
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Em outras situações cheguei a me ver transtornada em querer uma explicação para aquela que deve ter sido, sem sombra de dúvida, uma das mais intrigantes perguntas que a humanidade já viu: “como pode um peixe vivo, viver fora da ‘bacia’?”. Acreditar que um dia eu solucionaria aquele mistério me fez ter forças para continuar a vida e querer crescer. Daí, um dia desses, me aparece um adulto insensível e, como quem me joga um balde de “água fria”, me diz que a palavra final não poderia ser aquela. Por pouco não lhe quebro a "bacia"!
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Ainda bem que eu prefiro acreditar em crianças. Tanto que a resposta para o tal mistério encontrei ouvindo Diego e Thiago, ambos com idade entre três e cinco anos, enquanto brincavam aqui na porta. Eu parecia não acreditar naquilo que meus ouvidos alertavam. Tanto que fiz questão de parar o que estava fazendo e perguntar – como é, Diego? Como pode um peixe vivo viver fora de onde? – e ele com aquele jeitinho lindo, inocente, calmo e sempre sorridente, respondeu da mesma forma para todas as vezes que perguntei insistentemente como quem parecia não acreditar: da bacia!
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Mas e essa história toda de bacia, de onde vem? O Thiago respondia, quase que automaticamente a cada vez que eu perguntava “de onde?” e o Diego respondia “da bacia”, um bom e reluzente “de ouro”, e ele fazia isso com tanta convicção. Hum? Da bacia de ouro? Como assim? Ora, ou tu vais me dizer que não lembra da bacia de ouro ariada com sabão, enxugada com roupão e que pertencia à crioula sambante vinda da Bahia?
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Sei que basta o mínimo de lógica para compreender algumas palavras em determinadas músicas ou contextos, mas confesso que esquecer um pouco dessa mesma lógica e das coisas todas tão certinhas, se desligar do mundo, tirar os pés do chão, pode ser mil e uma vezes mais divertido. Por fim, acreditem em mim: um dia, um belo dia, mesmo que já não tenhamos tempo nem coragem para dialogar, vai chover “pintos” de amor.

domingo, 6 de abril de 2008

Eu-bolinho de arroz

Desde a época da escola me recordo de ouvir meu professor de História dizer que “uma mentira dita dez vezes torna-se verdade”. Talvez isso nem fosse mesmo uma verdade, mas o fato é que ele falou isso tantas vezes e em tantas aulas que acabei internalizando esta teoria. A impressão que eu tinha era que não importava sobre o que ele falasse, se o sistema feudal entrava em crise, se a segunda grande guerra estourava ou mesmo se um branco na mente lhe ocorria, lá estava ela: a frase da verdade, ou da mentira, como preferirem.
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Peraí! Peraí! Como é que é a história, rapaz? Quer dizer que se eu disser uma mentira dez vezes levo a crer a quem a ouve que ela é a mais pura verdade? Bom, eu diria que o número dez, nesse caso, é meramente simbólico. E diria também que não somente uma mentira quando dita, mas qualquer coisa que seja exaustivamente repetida. Se realmente vira verdade ou não, isso é discutível, mas que gruda no cérebro, gruda. Ou que outra explicação posso dar à letras como a do “créu”, “piriguéti”, entre tantas outras coisas que não nos saem da mente?
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E foi assim que voltei da minha última viagem, disposta a assumir a identidade de um bolinho de arroz. Confesso que acordar, tomar café, almoçar, jantar, conhecer pessoas, interagir com elas, participar de espaços de formação, ir às festas, voltar “para casa” e dormir ao som de “Eu sou um bolinho de arroz/Minhas perninhas vieram bem depois/Os meus bracinhos ainda estão por vir/E eu não tenho boquinha pra sorrir/Por que? Por que? Por que?/Porque eu sou um bolinho de arroz...” faz qualquer um ter a convicção de que, no mínimo seu eu - lírico é um bolinho de arroz.
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A música é cantada com muita alegria, mas... Alguém saberia dizer por que o bolinho de arroz, mesmo com seus dentes tão branquinhos, não tem boquinha para sorrir? Talvez porque as perninhas tenham demorado para vir, ou porque os bracinhos ainda são inexistentes. Pode até parecer brincadeira, mas isso me fez pensar sobre toda essa discussão que temos visto sobre permitir ou não que pesquisas sejam feitas por meio da utilização de células-tronco embrionárias.
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A Igreja defende sua postura contrária à permissão alegando que pesquisas como estas sejam um atentado à vida. É válido lembrar que ela própria admite que a vida humana anda de mãos dadas com a vida do cérebro, tanto que a doação de órgãos é legítima a partir do momento que se constata morte cerebral. Então, como dizer que pesquisa com embriões são um atentado à vida quando, nas primeiras semanas, não há nem mesmo um sistema nervoso? Onde tem início a vida? Tomás de Aquino opinava que Deus infundia a alma no sexto mês.
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As células-tronco, também conhecidas como células-mãe, são células que possuem melhor capacidade de se dividir dando origem a outros tecidos do corpo como ossos, nervos, músculos e sangue. Permitir pesquisas desta natureza significa, para a vida de muitas pessoas, uma verdadeira transformação, e para a felicidade. Espero daqui a algum tempo poder ouvir muitas pessoas a cantar, com a mesma ou quem sabe até com mais alegria, que são verdadeiros “bolinhos de arroz” e que já podem sorrir porque já não lhes falta mais nada, ou que, se lhes falta, logo logo o que lhes falta estará por vir.

sábado, 29 de março de 2008

No Maranhão babaçu abunda

E como abunda! Durante o Encontro Regional de Estudantes de Comunicação do Norte e Nordeste 3 – ERECOM – realizado em Teresina, Piauí, quando acordadas naquela manhã ao som deste super hit regional, algumas pessoas pareciam confusas, para não dizer assustadas. A vontade de sorrir, misturava-se, entre outras coisas, a olhinhos remelentos e inquietação sobre a veracidade daquilo que se ouvia: “como assim, o Maranhão baba a minha bunda?”.
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Não gosto de falar sobre bunda. Até mesmo porque se existe alguém com propriedade para falar sobre isso, esse alguém certamente não sou eu. Talvez nunca alguém tenha me ouvido falar esta palavra. Mas me chamou a atenção que, em alguns espaços, não se pode nem mesmo escreve-la. Falar em bunda no word é tabu. A palavra é sublinhada de vermelho e vêm as opções “banda, boda, bomba, bonde, borda”. Como assim, boda e não bunda? E não dá para adicionar ou incluir no dicionário. O word é contra a inclusão da bunda.
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Mas, sejamos mais fortes e superemos este ponto de opressão. Não sou maranhense, mas se tem algo que me fez ter paixão por este estado que me acolheu com tanto carinho, foram suas palmeiras, aquelas onde cantaram, ou ainda cantam, os sabiás de Gonçalves Dias. E são delas, das palmeiras, que vem toda essa história inquietante de babaçu.
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Em qualquer busca rápida pela internet, tu podes encontrar, por exemplo, coisas do tipo: “é verdade que no maranhão babaçu abunda?”. Pois eu diria que o babaçu não só abunda, mas que ele abunda e muito! Tanto que é forma de sustento para cerca de quatrocentas mil famílias, e vale destacar que, dentre elas, 90% são mulheres, tanto que há, por aqui, o Movimento das Quebradeiras de Côco Babaçu que lutam pelo cumprimento da Lei do Babaçu Livre.
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Este movimento surgiu a partir da segunda metade da década de 80 quando as áreas de ocorrência do côco babaçu foram cercadas e apropriadas indevidamente por empresas agropecuárias e grandes fazendeiros com vistas na monocultura. Com a Lei do Babaçu Livre a extração do côco fica permitida mesmo em terras privadas.
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Do babaçu são feitas esteiras, cestos, chapéus, carvão vegetal, produtos cosméticos, óleos, farinha para mingaus, bolos, pães, pudins e biscoitos, e também aquela multimistura distribuída pela Pastoral da Criança para combater a desnutrição. E vale dizer também que sua palmeira não é exclusividade somente do Maranhão. Há babaçu no Tocantins, Pará e Piauí. Opa! E no Ceará, não? Hum... acho que encontrei a explicação para o porquê de eles preferirem fazer culto ao “bolinho de arroz”...
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O Erecom Piauí me deixou no peito um vazio de saudade e ao mesmo tempo um transbordar de esperanças nessa gente nova que vem chegando aí...

sábado, 15 de março de 2008

O contrário de chocolate

Confesso que tenho um sentimento que ainda não sei, de forma precisa, que nome deveria lhe dar. Tudo o que sei é que vivo com a constante impressão de que por pouco, por muito pouco, mesmo, não fui eu a pessoa quem falou pela primeira vez aquela frase tão brilhante.
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Seguindo este pensamento, devo dizer que tenho a leve impressão que, se alguma vez na vida tivesse ido à Pedreiras, interior do Maranhão onde, segundo relatos de estudantes universitários, os ciclistas param no sinal de trânsito ao lado dos carros, certamente poderia ter tido a honra de falar pela primeira vez que “a educação de Pedreiras é igual a da China”.
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Na verdade, para ser a pessoa a falar pela primeira vez alguma frase brilhante não basta apenas ser criativo, é preciso ter oportunidade. Sei que isso parece uma daquelas frases horríveis de livros de auto-ajuda ou de um daqueles palestrantes que falam sobre mercado de trabalho e cursos profissionalizantes e que no final acrescentam algo do tipo, “porque você é um vencedor!”, mas, nesse caso é bem verdade.
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Por exemplo, você pode ser criativo, militar na esquerda, ser maior de idade e ter 1m68 de altura, mas se tiver voz de criança, pode ter certeza que a tal oportunidade é anulada e a tua pequena voz dificilmente será ouvida em uma das badaladas rodas de conversa de estudantes universitários. Por isso nunca consegui explicar o porquê eu sou míope e ando sem óculos ou porque comecei a questionar a Democracia após ler Oscar Wild e que relação isso tem com o Bolsa Família.
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Segundo Wild em A alma do homem sob o socialismo, a democracia, apesar de despertar grandes esperanças, “significa simplesmente o esmagamento do povo, pelo povo e para o povo”. Concordo com ele e acrescentaria ainda que isso se dá por conta de uma educação que cada vez mais conduz para um conformismo quando deveria causar inquietação, permitir questionamentos. E a relação que isso tem com o Bolsa Família? Pergunte ao povo se o programa é bom ou ruim.
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Bom, o Oscar Wild foi para ilustrar. É consenso que determinadas discussões são extremamente inoportunas quando estamos em badaladas-rodas-de-conversa-de-estudantes-universitários criando frases brilhantes enquanto a hora da aula não chega. O “tudo tem sua hora”, eu cresci ouvindo mamãe dizer. Tudo bem, tudo bem, ela falava isso quando eu pedia alguma coisa que ela não tinha dinheiro para comprar, mas acabou virando lição de vida.
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E assim, as pessoas não costumam ouvir de mim frases brilhantes, no máximo elas ouvem pérolas ou misturas brilhantes de ditos populares, como por exemplo, “ela fez tudo de ‘divina’ e espontânea vontade” ou “ele já queria puxar ‘farinha’ para a brasa dele”. Tudo bem, também, que isso não é nada como “a educação de Pedreiras é igual a da China”, mas acredito que foram graças à pérolas como essas e ao fato de eu ser criativa, militar na esquerda, ser maior de idade e ter 1m68 de altura, que meu querido amigo Lutero atribuiu a mim a autoria da mais brilhante de todas as frases: “quando eu era criança eu achava que o contrário de chocolate era morango”.
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O triste é que eu nunca disse isso. Embora tivesse querido, e muito. Ele sorriu, eu sorri, mas não pude suportar. Precisava revelar a ele que a frase não era minha, embora ele tivesse certeza disso. Lutero achava que eu a tivesse dito pela primeira vez. Já eu achava que poderia ter sido Paula. Só sei que não fui eu, nem Paula, nem Lutero. Acho que podemos acreditar que “quando eu era criança eu achava que o contrário de chocolate era morango” foi uma frase criada a partir de nossos imaginários coletivos tão postos em evidência nas inúmeras e badaladas-rodas-de-conversa-de-estudantes-universitários.

domingo, 9 de março de 2008

Meninos que dão em árvore

Por mais que eu sempre tivesse querido, biologicamente falando, nunca tive um irmão. Como eu demorei bastante para falar, o meu forte mesmo era observar e, se fosse algo viável de ser imitado, falando aqui do ponto de vista da discrição, eu o faria. Foi assim que, quando criança, me peguei algumas vezes tentando andar como papai ou pior, me pegaram com a mão na lâmina de barbear e o rosto cheio de creme a um passo de cometer o meu primeiro ato infracional. Uma verdadeira delinqüente!
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E foi assim que eu cresci. Em meio a um monte de meninos correndo nas ruas da periferia do São Francisco. Éramos muitos. Como a rua era fechada, a concentração era grande e o barulho em frente às casas, maior ainda. Na mesma idade que eu havia somente uma menina, isso fazia com que a regra para nós duas fosse bem clara: ou passaríamos o dia inteiro brincando de preparar comidinhas imaginárias, ou nos juntaríamos aqueles mais de dez meninos loucos e teríamos mil e uma opções de brincadeiras diárias! Uhu!
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Fazer uma decisão dessas não era tão simples como pode parecer. A começar pela educação que tínhamos e que, ainda hoje, temos em nossas escolas. Desde crianças não somos estimulados a trabalhar o corpo e a nos preparar fisicamente com um discurso cada vez mais forte de que isto acontece por conta de uma “questão cultural”, afinal, estamos na cidade, não? Os meninos ainda conseguem subverter esta lógica quando, no horário do recreio, correm, sobem nas mesas, se penduram nas escadas e liberam toda sua energia. Para mentes conservadoras, é natural que os meninos se comportem desta forma, mas se há ali uma mudança de gênero e a condição agora é cabida às meninas, pode ter certeza de que a repressão se fará.
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Mas, quem se importa? Minha tia se importava, e muito. “Camila, cadê tua mãe?”, perguntava ela sempre que me via na rua feliz da vida brincando com um monte de meninos. Ah, e vale lembrar que feliz mesmo quando o dedão do pé estava arrebentado porque, naquela época a rua não tinha asfaltamento. Mas, mais legal mesmo foi a cara dela ao ver, em meio às minhas adoráveis pecinhas de lego lego, alguns carrinhos. Ora, eu só tinha uma amiga e nós havíamos decidido por consenso que brincar com os meninos era mil e uma vezes mais divertido, ter barbies naquela situação não era nada inteligente.
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Mas eu não me importava. Tinha mais coisas com o que me preocupar, afinal, precisávamos “deliberar” em alguns calorosos minutos de discussões e brigas, do que iríamos brincar à tarde, na hora do “vale à pena ver de novo”, se seria de “com licença, Beth”, “rouba bandeira”, “polícia e ladrão”, “quem chega primeiro”, “remaninho, remaninho”, “arame e lego”, “passinho ou gol” ou de alguma outra proposta que surgisse no momento para apimentar ainda mais a discussão.

domingo, 2 de março de 2008

Microondas casamenteiras


Durante minha vivência de doze dias no Santo Dias, pré-assentamento do MST localizado na zona rural de Guapé, sul do estado de Minas Gerais, tive a oportunidade de conhecer um casal de jovens que muito me chamou a atenção.
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O Renato concluiu recentemente seu curso de Engenharia Florestal, e a Aline é estudante de Agronomia da Universidade de Lavras. Ambos têm idade em torno de 25 anos e há um ano decidiram, pouco a pouco, abrir mão da confortável vida de jovens de classe média alta e viver como trabalhadores do campo assentados.
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Em seu barraco, de um cômodo só, não há nada além de um armário com sementes crioulas, alguns mantimentos e, bem no cantinho, um colchão de casal, “porque cama ocupa muito espaço”, diziam. Do lado de fora, na cozinha, uma mesa com uma bonita toalha quadriculada, dois banquinhos de madeira e um fogão para cozer à lenha. Já no banheiro, um chuveiro feito de lata e, para os dejetos, bastante serragem, para que posteriormente possam ser utilizados como adubo.
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No dia 9 de fevereiro deste ano, às 15h de um bonito sábado, os dois uniram-se em casamento iluminados por raios de luz que passavam pelos galhos das mangueiras que tinham em seus troncos mensagens relacionadas à terra, à luta, à união e à família, e que nos refrescavam com uma prazerosa sombra naquela tarde tão ensolarada.
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Nada de carne nem álcool. Após a cerimônia as pessoas cantavam, dançavam, sorriam, conversavam e principalmente comiam. Eram pamonhas doces e salgadas, deliciosas broas de amendoim, bolos de mandioca ou milho, pães de queijo, requeijões, bolachas, pãezinhos entre tantos outros quitutes preparados em mutirão pelas donas das casas do assentamento, e tudo, claro, regado a muito suco de manga ou goiaba que poderia ser vermelha ou ainda branca.
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Essa história toda de microondas veio de uma conversa minha com um amigo da Aline alguns dias antes do casamento. Ele nos contava sobre a reação de sua família ao receber o convite para o casamento: “no convite a Aline e o Renato escreveram que não queriam presentes, que a presença de cada pessoa seria o seu maior presente.”
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A loucura começou bem aí. Segundo o amigo, a Aline tinha uma tia pra lá de chic que estava indignada com a possibilidade de não levar um presente para sua sobrinha. Ela estava disposta a subverter aquele pedido, quase uma regra, proposta pelo jovem casal. Ah, mas o que pode haver de mal ou de engraçado nisso? Coitada... Era somente uma tia “pra lá de chic” querendo presentear sua sobrinha, ora ora.
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Até aí, tudo bem. Tudo bem se o presente da tal tia não fosse um bonito e moderno forno microondas! “Eu fiquei me perguntando o que a Aline iria fazer com um forno microondas”, disse o Thiago, gargalhando durante nossa caminhada.
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Eu confesso que também me deparei diante do mesmo questionamento e que foi quase inevitável não sorrir logo em seguida. Não sei se eles ganharam o tal do forno microondas, as únicas coisas que sei são duas: a primeira é que o Renato e a Aline são, para mim, um exemplo bonito, verdadeiro e próximo do que é um suicídio de classe; e a segunda é que ter uma tia “pra lá de chic” quando se é socialista, pode ser bem complicado, mas, com uma pitada de humor, bem divertido.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Axilas libertárias e sovacos libertinos

Sovaco ou axila, não importa. O que importa é que falar sobre ela, a junção do membro superior com a parede lateral do tórax, sempre foi um grande tabu. Não consigo compreender o por quê, afinal, todo mundo tem, e tem não só uma, mas duas axilias!

Há quem considere sua axila a parte mais querida de todo o corpo. Foi isso que ouvi uma menina falar durante uma dinâmica lá em Minas em que cada um, após refletir alguns instantes de olhos fechados, deveria dizer aquela parte do corpo em que primeiro pensou. Entre respostas como mãos, pés, olhos e boca, ou entre outras não tão ingênuas assim, ela respondeu que era sua axila, pois a querida lhe proporcionava "momentos de extrema alegria e descontração". Eu tive uma crise de riso nesse momento. Foi interessante.

O mais intrigante é que em torno das axilas gira toda uma indústria: são antitranspirantes, desodorantes liquidos, cremosos, em spray ou aerosol, com cheiro ou sem cheiro, clareadores, aparadores de pêlos, giletes, depiladores à cera ou a laser entre tantas outras maravilhas pra deixar qualquer axila muito atraente. Uma verdadeira apropriação das axilas pelo capital.

Essa manhã pensei: porque não fazer das minhas axilas espaços de protesto ou áreas de conflitos e reivindicações? Depois que os pêlos estivessem grandes o suficiente, eu passaria uma gilete em uma parte, para simular algo como uma devastação. Em seguida, plantaria algumas sementes de pêlo em formato de eucalípito, em alusão à Aracruz Celulose e por fim, para tensionar ainda mais, colocaria uns Phthirius pubis militantes, que logo depois, com a ajuda da grande mídia que incriminaria seu movimento e suas manifestações, ficariam popularmente conhecidos como "chatos".

E isso tudo aconteceria na axila esquerda, é claro. Porque a axila esquerda é mais de luta que a direita, afinal, está constantemente exposta nas manifestações: se o pulso esquerdo está lá no alto, firme, cerrado, pode contar que a axila esquerda é sua base. "E a base é sempre algo muito importante, ainda mais quando se trata de axila". Bem, se Marx nunca disse isso certamente foi por nunca ter tido a oportunidade.

Por fim, gostaria de dizer que este texto não tem uma moral, um final e nem é uma tentativa de dizer que eu me tornei uma naturalista ou alguma revendedora de cosméticos prestes a lançar uma nova linha de produtos voltados exclusivamente para elas: as fabulosas axilas! clap clap clap! Eu só queria falar delas... sobre elas... Por que?

Ah, porque elas estão sempre conosco e com as outras pessoas, também... na maioria das vezes nem são percebidas ou em outras, são percebidas até demais, virando motivo de chacota, como em "uma axila incomoda muita gente... duas axilas incomodam muito mais!", mas o fato é que ninguém fala delas. Não se pode coçá-las em público e nem todas as pessoas se permitem tocar as das outras afim de lhes proporcionarem "momentos de extrema alegria e descontração". Que chato! Eu desejo que, de agora em diante, falar sobre as axilas e interagir com elas não seja mais um tabu! Ripilitimtim!
 
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