segunda-feira, 21 de março de 2011

A cronista e o poeta

Para Camila Cutrim

Quando a cronista se encantou com o poeta, a literatura experimentou uma agridoce confusão. Do dito pelo não dito, aos dois valia muito mais o que se podia com palavras escrever: textos, canções, correspondências. As da cronista, críticas cotidianas. As do poeta, caos de sentimentos.

As palavras, porém, mesmo sendo muitas, não se furtavam do risco da escassez, posto que declarar-se a um poeta não era a mais fácil entre todas as tarefas. À cronista, o passar dele era sinônimo de um silêncio faminto e devorador de um prato farto de adjetivos, substantivos, verbos e outros artigos.

Quando o poeta surgia, era ele o charme e o amor em pessoa sendo cobiçados por mais da metade de um mundo de tantas outras meninas que sequer percebiam que seu coração ia ficando amarelo de tanto que não respondia, porque mais fortes que isso eram os sonhos e vontades de todas elas de serem letra e música em uma das composições únicas do poeta: poesias.

Para a cronista, estavam postos o medo e a condição de não querer ser qualquer um e com isso a recusa de ter coisa qualquer por escrever. Queria desejar-lhe uma pedra, uma palavra, um sentimento, uma flor. O problema estava justo na certeza que ela tinha de que tudo o que escrevia ia transformando-se, palavra por palavra, em coisa ridícula.

Sabes, meu caro amigo poeta, como se tudo fosse carta de amor.

Cronista e poeta têm uma caixa de palavras intensas que guardam e carregam consigo para onde quer que possam ir. Ali há letras tão vivas que, ao abraçar qualquer um dos dois, é possível senti-las pulsar. São sinais. Um braço, dois braços, um abraço: o suficiente para fazer entender que, entre cronista e poeta, paixões são rascunhos de amores literais.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Pecado

Aceitei Jesus e voltei para casa com um peso imenso na consciência.

Eu só queria brincar, juro. Mas os danados dos meus coleguinhas tinham mesmo umas manias bestas para escolher divertimento, de modo que, se nas noites anteriores preferiram assistir às Chiquititas a brincar de rouba bandeira, naquele dia simplesmente decidiram que deveríamos fazer parte do grupo de adultos que se animavam em frente à casa do Juninho.

Acontecia que, de tempos em tempos, os pais do Juninho organizavam lá na rua atividades da igreja da qual faziam parte. Até que as coisas eram animadas, reconheço: tinha música, cantos, palmas, histórias e às vezes até lanche! Mas confesso que quanto mais perto chegava do fim, mais alegre eu ficava, porque então poderia correr, gritar, brincar de roubar e fazer o que mais desse em minha cuca de lelé.

Ledo engano.

Ao final, todas as pessoas que haviam participado daquele ritual pela primeira vez, inclusive nós, pobres e indefesas crianças, fomos convidados a ir à frente e responder, um a um, ao questionamento que encerraria aquela noite: – Você aceita Jesus? – Meu Deus do céu, como poderia eu ou qualquer outra pessoa recusar Jesus ali diante de todos aqueles olhos? – Sim...

Aquele episódio dava início a uma longa madrugada em claro. Era verdadeiramente um drama, porque eu era consciente que o que eu dissera não fora ao meu amigo Jesus, mas sim àquela igreja que, por sinal, não era a mesma Católica Apostólica Romana que ditava as regras que serviam de base à educação e às formas de ver o mundo que minha família me impunha.

Demorei, mas superei. Ninguém nunca soube, mas a ideia do pecado simplesmente me seguia, perseguia, curtia. Se havia um lugar onde eu não poderia tossir, eu sabia que esse lugar era a igreja, porque tossir na missa era pecado, assim como era pecado falar, escrever ou pensar na palavra “bunda”, não só na igreja, mas em qualquer que fosse o lugar.

Era confuso. Praticamente tudo era pecado. Não amar era pecado. Mas, amar, dependendo de quem fosse, poderia ser pecado, também. Era pecado pensar nas contradições da Igreja que estavam inclusive nas falas do padre: – Eu tenho certeza, mamãe. Ele disse: ‘Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz’, e depois, no mesmo dia, sem nem demorar muito, ele ordenou ao cordeiro de Deus: ‘dai-nos a paz!’. Não foi a senhora quem me falou que era feio dar e depois pedir de volta?

Mas não adiantava. Quando não eram as contradições, eram as besteiras. Eu até ia muito bem, mas bastava que a banda tocasse “Meu coração é para ti, Senhor!”, que eu, que não tinha carro nem nada e que no máximo passeava na Belina de Tia Helena, me danava a pensar na Parati, aquele carro bonito da mãe da Bruninha. E “Meu coração é PARATI, Senhor!” me fazia novamente pensar que aquilo era pecado.

Talvez fosse.

O fato era que desde ali eu percebia o quanto a religião, que deveria ser assunto de caráter privado, nos dividia e interferia em nossa vida em coletividade, impondo regras, medos, tabus. Optei por não querer. Hoje tenho a ideia de um Cristo em quem acredito, leio sobre santos, santas, deuses e deusas e tenho uma concepção de espiritualidade que não me impede de ver a realidade de forma científica e que, principalmente, me permite arrancar dos conflitos de outrora boas oportunidades para o riso. Me faz sentir bem.
 
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