sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ao sabor desta fatia

"Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial.” (Drummond)

Do momento exato em que puseram em minhas mãos este pedaço recém saído do forno até aqui, foram muitos os acontecimentos. Foi tempo de amar, de abraçar, de ter companhia. Tempo de mapa, estrada, dúvidas e alegrias. Tempo de teatro, de trabalho e de paixão pela literatura. Tempo de consequencias dos erros, de sentimento de culpa, de ledos enganos. Tempo de perceber-se humano. Tempo de pedir desculpas. Tempo de postar cartas. Tempo de fronteiras, de abraços, de separações. Tempo de sentir. Tempo de querer sumir. Tempo de fugir. Tempo de tirar cartas, de gostar do frio, de partilhar planos e exercer a ousadia. Tempo de não-vitórias. Tempo de voltar para casa. Tempo de recomeçar. Tempo de apaixonar-se. Tempo de reapaixonar-se. Tempo de conversar. Tempo de sorrir, de fazer malabarismos, de criar. Tempo de compreender. Tempo de intervir. Tempo de Rede. Tempo de ser reconhecido. Tempo de conhecer. Tempo de subverter. Tempo de lutar. Tempo de se organizar. Tempo de tomar partido. Tempo de críticas, crônicas e poesias. Tempo de silêncios, vazios e despedidas. De Magno Cruz. De José Saramago. De pessoas, familiares, amigos, camaradas. Tempo de comunidades. Tempo de periferias. Tempo de angústia, descontentamento, indignação. Tempo de derrotas, de injustiças, de opressões. Tempo que nos deixa no peito a necessidade de plantarmos novas revoluções. Tempo que agora projeta transformações para tempos futuros. A mudança de cidade. O mestrado em Comunicação. A distância da família, dos meus cães, meus amigos. Os laços a serem (re)construídos. Inquietações, dúvidas e descobertas: as metamorfoses cotidianas de minha própria vida.

Caixas, planos, saudades, partidas: estes serão os sabores do primeiro pedaço de minha nova fatia.

domingo, 10 de outubro de 2010

O passado que contarei

"E no entanto é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar. É preciso cantar e alegrar a cidade. A tristeza que a gente tem qualquer dia vai se acabar, todos vão sorrir, voltou a esperança, é o povo que dança contente da vida, feliz a cantar."
(Vinicius de Moraes e Carlos Lyra).

Sabe, meu jovem amigo, essa canção me faz lembrar aquele momento difícil por que passamos antes de chegarmos até aqui. Muitos de vocês que cá estão nem mesmo eram nascidos, mas eu e uma turma de camaradas sabemos bem e jamais esqueceremos, porque a consciência, ao passo que nos faz crescer, tem também o poder de nos trazer a tristeza e o sofrimento. E foram esses os sentimentos que dividiram lugar com tantos outros em nossos corações.

Naquele tempo, o governo, que deveria cuidar das pessoas e reconhecê-las como protagonistas de um processo de mudança fortemente anunciado e igualmente esperado, foi o mesmo que cortou verbas de setores fundamentais à vida e ao desenvolvimento humano, como a saúde e a educação, que criminalizou os que por direitos lutaram, e que teve na pobreza uma verdadeira fonte inesgotável do enriquecimento de uma minoria.

Vi uma cidade linda que amei como se fosse minha, eleger e sucumbir nas mãos de um prefeito que, quase três décadas antes, fora o mesmo que fizera uso da polícia para perseguir e reprimir estudantes em manifestação, assim como vi, dois anos mais tarde, um estado desacreditar na esperança ao ver eleitos governantes corruptos ou mesmo assassinos, e com a ajuda de um governo que de esquerda se dizia, mas que fez reviver uma verdadeira oligarquia.

A concentração de terras e riquezas, os altos preços da farinha, do leite, da carne, do feijão e do pão, as crianças e pessoas em situação de rua, a opressão vivida por mulheres, negros, homossexuais e índios, a alta tarifa e a péssima qualidade do transporte público, os tantos casos de descaso nos serviços de saúde, a falta de democracia nos meios de comunicação, a falta de segurança que, quando não tomava de assalto o trabalhador morador de periferia, o prendia, o espancava ou o matava porque lhe entendia como inimigo, e mais ainda, a relação entre tudo isso e a política, foi fazendo despertar, pouco a pouco, a população para a necessidade de um levante.

É bem verdade que tudo isso demorou bastante, uma vez que o processo de construção de uma consciência verdadeiramente crítica demanda tempo, sobretudo quando o mundo inteiro gritava, e o tempo todo, que aquele estado de caos sempre existira e que era natural que daquela forma fosse. Por isso, a cada homem e mulher que acreditava na possibilidade de uma transformação radical da sociedade, foi preciso se doar incondicionalmente. E assim fizemos.

Estudantes e trabalhadores compreendemos que nossa tarefa militante e nosso papel naquele momento precisavam ser de desconstrução de uma ideologia e formação de um pensamento novo, mas não único, porque era necessário que o conflito existisse para que o conhecimento enfim se fizesse. Às massas, coube o convencimento de que mobilizar-se precisava estar para além de um período eleitoral e que, principalmente, as revoluções deveriam ser permanentes.

E cada roda de amigos, cada mesa, fosse ela de bar ou de jantar, cada sala de aula ou de casa, cada rua, cada campo, cada fábrica, cada chão encheu-se de vida e passou então a ser reconhecido como espaço de aprendizado, de trocas de conhecimento, do mesmo modo que passou a se compreender que cada pessoa, independentemente de sua condição, credo ou nível de instrução, era também produtora de sentido. Era preciso transformar a estrutura social, econômica e política do país inteiro, mas era também preciso transformar valores.

Assim, cada um colaborou a seu modo, colaborou com o que de melhor sabia fazer, mas esforçando-se também para aprender aquilo que o outro fazia, e que tinha importância. Então, a resistência deixou de ser foco e passou a se alastrar e, de forma paciente, a mudança começou a acontecer. A indignação voltou a ser sentida. Era preciso trabalhar e ir às ruas reivindicar. Era preciso conquistar e distribuir o poder. Era preciso cantar, escrever poesias, crônicas, contar piadas. Era preciso fazer renascer a esperança e a alegria.

Para muitos, é claro, isso tudo não passava de sonho, romantismo, utopia, loucura. Mas, subvertemos. Lembras que te disse, no início desta conversa, que a tristeza e o sofrimento trazidos pela consciência dividiam lugar com tantos outros sentimentos em nossos corações? Pois sim, entre eles estava o amor a nossa classe e foi ele o que nos moveu. Com a revolução, o verbo amar, até então em desuso, voltou a ser conjugado e o amor, mais que sentimento, virou uma prática. Voltamos a abraçar, a beijar, a festejar, a sorrir.

E é por isso, meu jovem amigo, que embora tenham sido de tristezas aquele tempo que vivemos, são boas as lembranças que me trazem essa canção, porque já muito antes dali ela falava de uma transformação e de uma mudança que acreditávamos ser possível e que lutamos para fazê-la acontecer, mesmo quando acreditamos que poderíamos não vê-la. Hoje aquele tempo não passa de lembrança ruim. É passado. Hoje somos verdadeiramente felizes.

domingo, 26 de setembro de 2010

O pitel do Integração

E os primeiros relatos sobre a maravilhosa arte de especular.

Enquanto estudantes e trabalhadores punham o fim de mais um daqueles cansativos dias da semana ao sabor de seu corre-corre e teciam, a seus próprios modos, toda a vida daquele Terminal de Integração à beira da Praia Grande, nas televisões das casas do país inteiro aquele jornalista voltava a aparecer, tal como acontece ano após ano, para anunciar e convidar às inscrições os que sonham em participar daquele verdadeiro picadeiro de uma suposta vida real.

Suposta porque a vida real mesmo está em lugares como os Terminais de Integração. Estes são de passagens, de chegadas, de partidas, de despedidas e, principalmente, de permanência daqueles que vivem com a falta de oportunidades e que fazem a diferença surgir, contraditoriamente, em meio aquilo que é organizado para ser do mesmo jeito todos os dias. E assim ela surgia, com todas aquelas gostosuras de bombons e um punhado daquele jornal que eu odeio com todas as minhas forças.

Em meio aquele verdadeiro frenesi, estava ela agindo naturalmente enquanto parecia desafiar toda a cara que a gente que se mete a militante e cientista social bem sabe que a pobreza tem. A mim, que de fato perco mais tempo esperando um ônibus que às vezes nem passa do que no trajeto feito pelo dito cujo até a avenida mais próxima de casa, só restava fazer bom uso do tempo para observar e especular. E assim, a primeira hipótese se fazia e era aquela que dizia que tudo aquilo não passava de uma grande esperteza!

O plano era perfeito, porque beleza ela já tinha e a popularidade ela construía ao passo que sua identidade de vendedora de bombons ia sendo fortalecida. Porém, embora tivesse tudo para dar certo, minha primeira hipótese caía por terra com a mesma velocidade como ela surgira. O programa estreou, gerou polêmicas e principalmente muito dinheiro a seus patrocinadores, mas não houve por lá ninguém que tomasse para si a identidade de uma vendedora de bombons. Era uma especulação falha, mas o começo para muitas outras.

Ela: dona da voz que eu jamais ouvira, não era muda porque passava horas falando ao celular; não tinha como ser de família rica porque vendia bombons em companhia de sua mãe; não deveria morar em um bairro nobre porque seus amigos eram todos da periferia; e deveria ter feito inconscientemente aquela escolha sobre preferir dar bola às menininhas a qualquer cara idiota feito eu, hipótese esta mantida mesmo quando mais tarde eu descobriria que uma de suas supostas paqueras era na verdade a sua irmã.

Entre especulações, idas, vindas e principalmente, batalhas da vida, o pitel do Integração ia sendo construído nesse divertido quebra-cabeças de detalhes, nesta verdadeira arte de buscar sentidos em meio às histórias que cada pessoa carrega consigo, mesmo quando não sabe.

domingo, 19 de setembro de 2010

A pergunta que não fiz

Enquanto o Maranhão apresenta um dos maiores índices de mortalidade infantil e os piores índices de educação do país, existe um governo que insiste, tanto em nível nacional, como estadual, em anunciar que a condição de vida do maranhense nunca esteve tão bem e que o que se deveria mesmo fazer era respirar a brisa de uma suposta tranquilidade ou, quem sabe até, comemorar.

Fala-se, com muito entusiasmo, da ampliação do acesso ao ensino superior, atribuindo-se toda honra a programas como o Prouni e o Reuni, furtando-se, porém, de deixar claro à sociedade que, no primeiro caso, a verba utilizada para o pagamento de vagas nas faculdades particulares é a mesma que falta na universidade pública e que impede que o direito à educação pública e gratuita seja garantido a todas as pessoas, sem a perda da qualidade.

Fala-se em ampliação do acesso ao ensino superior sem se debater a necessidade de implementação de políticas de ações afirmativas que garantam que adolescentes e jovens, sobretudo negros e pobres residentes em nossas periferias, tenham não somente acesso, mas sobretudo condições objetivas de permanência na universidade, não precisando abrir mão de sua formação sob pena de sua própria sobrevivência.

No caso do Reuni, em especial, o que pudemos observar foi que a implementação deste programa ocorreu de forma impositiva, sem respeito a autonomia da universidade e, o que foi ainda mais grave, sem o mínimo de debate com a comunidade acadêmica e a sociedade em geral, e uma, entre tantas provas deste fato, foi a mais recente adesão ao Enem como única forma de ingresso à universidade federal, o que tem causado muito descontentamento.

Nesse sentido, gostaria de perguntar aos presentes candidatos, sobretudo aos que não expressaram aqui e nem nunca expressarão em seus projetos de governo a necessidade e, principalmente, uma vontade real de transformação social, até quando nós, adolescentes e jovens, pegaremos carona na implementação de políticas públicas que nos dizem respeito, sem que nosso protagonismo e nossa capacidade de debate e organização sejam, de fato, considerados.

*Intervenção elaborada por mim durante a audiência pública realizada na última quarta-feira (15) com os candidatos ao governo do estado para assinatura do termo de compromisso pelos direitos da infância e adolescência. Marcos Silva (Pstu), Saulo Arcangeli (PSol), Flávio Dino (PC do B) e, mais tarde, Josivaldo Corrêa (PCB), fizeram-se presentes, enquanto Jackson Lago (PDT) foi representado por sua esposa, Clay Lago, e Roseana Sarney (PMDB) por seu vice, Washington Luís (PT).

Importante destacar que a ausência da candidata e atual governadora do Maranhão não nos foi nenhuma grande surpresa, uma vez que há tempos a não participação em debates já havia sido anunciada. Atribuido a este e, entre tantos outros fatores, ao grande número de adolescentes que manifestou vontade de expressar suas inquietudes na ocasião, optei por compartilhar em outro momento a pergunta que eu muito queria, mas que infelizmente não fiz.

domingo, 12 de setembro de 2010

Fragmentos de uma carta já postada

Bom dia.

Porque amor é sol. É calor. É praia. É banho de sal da água do mar ou do chuveiro. É voltar para casa com o cheiro do teu shampoo em meus cabelos. É chorar na despedida por não conseguir dizer tudo o que queria dizer. É ter medo de não te encontrar de novo para ficar até o dia amanhecer.

É esquecer a fome e só depois de muito dela lembrar. Porque o amor para mim é uma mesa para dois, seja de café, almoço ou jantar. É hambúrguer, batata frita e suco de laranja dentro do cinema. É pizza com guaraná Jesus na praça de alimentação. É rabanada com pipoca dentro do teu quarto, em frente à tua televisão.

Amor para mim é sofrer por saber quanto espaço ocupo quando entro em tua casa, teu quarto e teu banheiro. São minhas roupas espalhadas, são meus produtos de beleza. É o pote de creme derrubado no chão do box. É o meu cheiro te fazendo lembrar e minha preocupação para lá nenhum objeto deixar.

É voltar para casa com um nó na garganta por não saber se tu ficaste bem. É deixar de lado toda a alegria que eu tinha em viajar se eu não for para aí te ver. Porque estar contigo é mesmo bom. Te ver, te ouvir, segurar tua mão tão bonita, te abraçar e sentir teu cheiro de calma, de madrugada, te beijar e sentir teu gosto de amor.

O amor é tudo isso. É diferença. É coincidência. O amor sou eu. O amor és tu. Quem o inventou, não sei. Só sei que estou longe da tua alegria e que ficar perto de ti é guardar estas lembranças como uma das coisas mais valiosas que tenho.

E se do nosso amor a gente é quem sabe, quem em meu nome dirá que é de paz que preciso quando o amor que guardarei por toda minha vida carrega consigo o nome da guerra?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Voltar à terra é preciso

A fuga dos domingos para uma manhã de quarta-feira vem para expressar a necessidade nossa de voltar à terra. Voltar à terra é preciso porque ela, chão, piso ou palco das mais variadas manifestações, é elemento presente de nossa história e de nossa organização em sociedade, porque ela, se entendida como natureza, constitui-se fonte dos valores de uso e de nossa própria vida.

Voltar à terra é preciso porque nela toda produção material ou simbólica se organiza, porque ela concentrada reduz a poucos não somente a riqueza expressa na economia, mas em todos os outros direitos não garantidos, como a cultura, a igualdade, a moradia, a formação, a organização e, principalmente, a participação, o reconhecimento, e mesmo a vida em liberdade.

Por isso, o direito à terra deve ser garantido a todos nós. Nós, os expropriados do planeta; nós, os exilados das sementes; nós, os apartados dos frutos; os operários sem fábrica, os camponeses sem chão, como nos dizeres de Mauro Iasi ou de Milton Santos ao expressar a terra como “teatro obrigatório da ação”, como o meio onde a existência humana é tornada possível.

É então por entender que sem terra somos todos nós, que faço destas palavras um convite ao voto pelo “sim” durante o plebiscito popular pelo limite da propriedade da terra que tem início neste dia 1º e segue até 7 de setembro em todo país. Informa-te sobre os pontos de votação e sobre esta grande campanha que expressa uma luta ainda maior, como o tamanho da precisão daquilo que nos é necessidade.

domingo, 22 de agosto de 2010

É tempo de partido

Quando chegar o tempo em que eu puser-me a falar de partido, haverá quem pergunte se falo do coração.

Responderei então, com o mesmo tom tranquilo que minha voz costuma ter, que sim. Falo do coração, porque afinal, falo de lutas, falo de sentimentos e falo, principalmente, de necessidades reais que eu e minha classe temos cotidianamente. E falar do coração deve ser motivo de orgulho porque pulsam em nossas veias as cores da revolução quando são de amor os sentimentos que nos movem.

Ao longo de uma estrada que me pus a trilhar nos últimos cinco anos, experienciar novas relações como a construção de um coletivo, a militância no movimento estudantil e as caminhadas junto aos movimentos sociais, fizeram-me vislumbrar a transformação e a vitória como possibilidades e a luta e a organização como necessidades.

E quando organizar-se faz-se necessidade e a consciência avança para níveis bastante distantes de onde um dia esteve, reconhece-se a importância de sair em defesa de um sistema de reivindicações transitórias entendendo que estas fazem parte da construção de um projeto mais amplo de sociedade.

Assim, encontrei um partido que defende um programa socialista para a educação, a saúde, a moradia, que trata a destruição ambiental e as opressões de machismo, racismo e homofobia como questões a serem combatidas, que fala sobre a necessidade de redução da jornada de trabalho e que entende a juventude e os trabalhadores como protagonistas no processo de transformação.

Encontrei-me em um espaço onde a solidão para atuar não mais há porque companheiras e companheiros fizeram-se camaradas, porque os vazios fizeram-se presenças e as necessidades de formação e de atuação vêm sendo supridas dia após dia em companhia daqueles que têm o centralismo democrático como sinônimo de confiança, disciplina e, sobretudo, coerência.

Fizeste-me ver a claridade do mundo e como é possível a alegria.
Fizeste-me indestrutível pois contigo não termino em mim próprio". (Ao meu partido, Pablo Neruda)

Quando lembrei-me que Pablo Neruda havia dedicado ao seu partido estas palavras, senti uma igual vontade de expressá-las ao organismo de que hoje faço parte. E assim, uma vez que a vontade fez-se necessidade, devo então dizer, de coração inteiro, que o tempo de partido é enfim chegado.

*Ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (Pstu) pelo tempo de aspirância e início de minha nova militância.

domingo, 8 de agosto de 2010

Por que usar óculos durante as manhãs

Acordei às 6h, tomei banho e café e segui sem óculos para o trabalho porque sempre acreditei que são mais simpáticas as pessoas que não usam óculos durante as primeiras horas do dia, ainda que elas sejam míopes, que não cumprimentem as pessoas por não tê-las reconhecido, que percam alguns ônibus por não terem conseguido ler letreiros ou outras coisas parecidas.

Em lá chegando, abri a porta de minha sala e, ainda sem óculos, pus em prática tudo aquilo que um tímido que se preza ensaia diariamente durante seu percurso para que tenha a completa certeza de que as coisas acontecerão de forma natural: um sorriso largo, porém discreto; um bom dia animado; uma caminhada de uma ponta à outra até a geladeira; um copo com água.

Eu estava mandando muito bem, até que uma colega de trabalho me chamou até a porta e comentou com voz de discrição: - Ei. Fomos roubados na noite passada. Serraram a grade, quebraram o vidro da janela, entraram na sala e levaram todos os nossos monitores de LCD. Abri a porta novamente e, em um piscar de olhos, a cena estava exatamente ali, completamente montada.

Os cacos de vidro no chão, as grades retorcidas da janela, as pegadas empoeiradas sobre o estofado da cadeira, aquele vazio de monitores ausentes sobre a bancada, minhas digitais na geladeira, aquela piada que eu e uma amiga fizemos quando nossas bolsas tiveram atraso no depósito, a forma como meus olhos passeavam pelo livro que eu fingia ler enquanto a polícia federal vistoriava o local, tudo levava a crer que eu era a maior suspeita.

Mas era claro que eu não era.

Depois daquele, na Universidade Federal do Maranhão aconteceram tantos outros roubos e mesmo assaltos que muitos de nós talvez só teremos conhecimento quando a administração superior ordenar aos trabalhadores de sua assessoria que o divulguem para então justificar seus planos de segurança armada, catracas eletrônicas e fechamento dos portões que dão acesso às comunidades vizinhas, como o Sá Viana e a Vila Embratel.

Na Ufma, não se fala em concurso público para substituição de uma segurança feita de forma terceirizada que serve para intimidar estudantes em reivindicação e trabalhadores que fazem o trajeto pelo campus porque não podem pagar o valor cobrado pelo transporte público, mas que em contrapartida não consegue arcar nem mesmo com o seu principal, porém absurdo objetivo, o de proteger o patrimônio físico da Universidade.

Eu não queria, mas já há algum tempo voltei a usar óculos às primeiras horas da manhã. Fez-se necessário.

domingo, 18 de julho de 2010

Com sabor de Ploc

Primeira metade da década de 90.

Graças a minha única e por isso melhor amiga, eu podia escolher pela espiada concedida pelas brechas feitas entre seus dedos, quem me tiraria de uma vez por todas daquele poço em que costumávamos cair todas as noites enquanto nossos pais assistiam ao jornal.

- Caí no poço! / Quem te tira? / - Meu bem. / Quem é teu bem? / - Alguém. / É esse? / - Não. / É esse? / -Não. / É esse? / - É! / Um aperto de mão, um beijo no rosto, um abraço ou um passeio completo? / - Um passeio completo.

Naquela época, um “passeio completo” tinha muito mais a ver com um beijo no rosto, um abraço e um passear de mãos dadas até o final daquela rua sem saída, do que com um traje que, mais tarde, seríamos obrigados a vestir por conta da formalidade de determinadas ocasiões.

De volta ao caso, a verdade era que graças à facilidade dada por quem fechava meus olhos na brincadeira, o meu escolhido era sempre o Cristiano, aquele dos tons de pele, olhos e cabelos de uma harmonia sem igual, e por quem eu nutria uma paixão tão grande que me fez fazer o que fiz.

Era uma bonita tarde de sol com a calma de pós-almoço que só as periferias têm quando decidi comprar um ploc para presentear o Cristiano. Não tendo eu resistido àquela gostosura em minhas mãos, avaliei que ele não se importaria caso eu lhe desse somente a metade. E assim o fiz.

Comi a parte de morango, porque naturalmente era a mais gostosa, e embrulhei a outra, cuidadosamente, em uma folha de caderno, porque eu precisava também ficar com a figurinha. Havia muito de romantismo em minhas ações. Feito o presente, pedi àquela amiga que o entregasse.

Ela voltou dizendo que o pedido havia sido entregue com sucesso, que Cristiano estava na sala quando o recebeu e que a família, ao ver a situação no mínimo engraçada, começou a rir e fazer uma verdadeira festa. O mais importante foi que ela disse também que ele havia ficado envergonhado.

Anos depois, quando já não mais masco chiclete, embora goste do gosto, reencontro aquela com quem compartilhei importantes momentos de minha infância. Conversa vai, conversa vem, e em meio a muitos risos ela confessa que, na verdade, o Cristiano nunca recebera aquele presente.

- Foi que eu comi a outra metade do ploc. - Confessou.

E como o tempo tem o poder de fazer com que uma mesma confissão possa te levar da acidez à doçura, sorrimos. Sorrimos porque esta, que poderia ter tido outro gosto, veio doce, como o sabor daquele saudoso ploc.

domingo, 11 de julho de 2010

Você é feliz?

Pensamentos, livros, poesias, músicas, trabalhos, lutas sociais, detalhes e companhias, a família, as instituições, sentimentos como o amor, a situação política de um país e a vontade de organização para a transformação ou manutenção de uma determinada ordem dizem muito sobre nossa felicidade ou sobre a necessidade de refletir sobre ela.

Pensando em gerar essa entre outras reflexões, no verão da Paris de 1960, Edgar Morim e Jean Rouche puseram nas ruas a ideia da enquete que visava saber sobre a felicidade das pessoas. As respostas de estudantes, operários, imigrantes entre outros, dadas ao questionamento aparentemente simples, expressam suas concepções sobre a vida, a política e o cotidiano.

Da cabeça para as ruas, a ideia fez-se imagem e do conjunto dos depoimentos e das alegrias e, principalmente, angustias neles refletidas, viu-se surgir um retrato social composto por personagens reais da vida cotidiana. Com a exposição das filmagens e da identificação da crise entre verdade e ficção, dava-se início ao cinema verdade com o documentário Chronique D'Un Été.

Em Crônica de um verão, é fácil identificar-se com os conflitos e angustias expressadas por aqueles que constroem com suas próprias narrativas a história documentada. Para além desta ou daquela concepção, é possível concluir o quanto determinadas questões podem ter maior ou menor relevância em se tratando da felicidade de alguém.

Sobre a felicidade, pensamentos de Marx, livros de Saramago, poesias de Iasi, músicas de Marisa e Zeca, um trabalho que traga prazer, o bem estar em família, alguém que te tenha saudades e que sinta alegria com tua surpresa ou tua companhia, um cão que festeje tua volta, amigos que discutam qualquer coisa e política e camaradas para construí-la, tudo isso diz sobre a minha.

E você, é feliz?

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Aniversários

São estranhos a quem só queria que todos os dias fossem igualmente especiais.

domingo, 27 de junho de 2010

Castigos para os que virão

Velhos tempos eram aqueles ao sabor da pimenta malagueta que temperava a boca depois de um pedaço de palavrão, porque escutas biônicas e leitores de pensamentos são itens de série que historicamente acompanham as mães desde suas saídas das maternidades.

Naquela época, ficar sozinho no quarto, não assistir televisão ou ter que abraçar alguém com quem havíamos acabado de brigar, eram as mais severas entre todas as punições, porque implicavam em não poder brincar na rua ou perder os episódios inéditos daquele desenho preferido.

Hoje as necessidades mudaram e aquilo que era castigo já não mais é. As crianças já compram salgadinhos ou mesmo chicletes com sabor de pimenta e tortura é ter que assistir televisão ou não dispor de um espaço onde se possa ficar sozinho para exercer o direito à privacidade.

Os tempos são mesmo outros, e uma vez que bater não educa e que conversar nem sempre basta, daqui para frente já podemos pensar em termos de castigos para aqueles que ainda virão. E foi exatamente isto o que Seane Melo e eu nos pusemos a fazer e, dentre tantas ideias, seguem algumas:

Mãe
Menina(o), vá para a rua brincar com os meninos, essa semana tu estás de castigo, nada de Twitter, Orkut ou Facebook.


Filha(o)
E os meus amigos?


Mãe
Ora! É por conta dessa tua mau criação que passada esta semana tu terás somente 1600 caracteres para escrever recados. E se quiseres!


Filha(o)
Mas isso não dá nem pra...


Mãe
Mas, sem mais! Vou desinstalar esse emulador do PC, se quiseres jogar vais ter que usar o Playstation!


Filha(o)
Não, mamãe, Playstation, não!
Prometo que me comporto.

domingo, 20 de junho de 2010

Vazio literário

Vai, cão das lágrimas, passeia por aí feito aquele Caim, fareja e traz aqui a paixão pela literatura que vi se revelar a cada virar de páginas, o bocado gostoso de ironias que germinam do ritmo de escrita só encontrado naqueles textos pontuados de forma tão peculiar, e a crítica política ao sistema econômico, à propriedade privada, à religião e aos valores humanos que só levam estes mesmos humanos a uma cegueira absurda que não lhes permite enxergar nem mesmo a si.

Guia, cão das lágrimas, e traz de volta aqueles que mais que personagens são identidades, que carregam consigo predicados e uma infinidade de defeitos, porque afinal, toda esta dicotomia habita mesmo em nós. Só não te esqueças, meu querido cão, de secar as gotas salgadas que brotaram desta imensa sensação de vazio, porque felizes são aqueles que subvertem a confortável certeza de uma História após a morte e trabalham em vida pois compreendem que sua continuação se faz no outro.

*Em memória do meu escritor preferido, o José Saramago.

domingo, 13 de junho de 2010

O tempo de uma paixão

Quando Mauro Luís Iasi contou sobre a vontade de ser eterna que toda paixão carrega consigo, falou da cegueira e da loucura que tomam os amantes que se põem a desafiar, com qualquer embarcação ou nenhuma orientação, os mares mais insensatos e furiosos, e da relação declarada de guerra que este sentimento tem com o tempo.

O tempo, “que vive entre os números do relógio prisioneiro”, é também o responsável pela ilusão e desorientação dos amantes que temem e sofrem por pensar que este seja, assim como penso, um verdadeiro faminto e devorador de grandes paixões. E é exatamente por medo desse passar, consumir, digerir, que aqueles que vivem uma paixão se atiram insanos, antecipando-se ao fim.

Acontece que a paixão ou outros sentimentos tão avassaladores quanto, não são regidos por mágica como as pessoas gostariam que fossem, e têm, na ciência, uma série de explicações, dentre elas, aquela que diz que estes costumam durar no máximo quatro anos ou o tempo até que apareça outro alguém que faça despertar um sentimento ainda maior.

É a partir daí que penso sobre a quantidade de tempo desperdiçada ou o quanto do melhor de uma paixão deixamos de viver cotidianamente, seja por medo, por muito avaliar ou simplesmente por esperar que chegue um momento que, com o passar do tempo, só tende a se afastar ainda mais. E deste modo, deixamos que passem as paixões, os amores, a vida.

E foi assim que diante dos últimos acontecimentos comecei a entender como algumas paixões têm passado por pessoas próximas e principalmente por mim. Estas, se não são vividas em seu momento exato, se não recebem quem se atire nelas de imediato, correm o risco de não mais acontecerem. E então, tem-se carinho, amizade, amor platônico ou qualquer outra coisa, menos paixão.

Porque o tempo já terá devorado as maiores vontades.

domingo, 6 de junho de 2010

A mais esfarrapada

Tudo bem se tu dizes que vai à padaria comprar cigarro e só volta quinze anos depois. Eu não me importo. Agora vires tu dizer que pegou um resfriado e que por isso saiu para tomar uma caipirinha e comer uma pizza para ver se melhorava, não! Essa não! Essa foi o fim!

*Texto baseado na mais esfarrapada entre todas as desculpas contadas por Bia Deruiz.

domingo, 23 de maio de 2010

Insensatez*

Viajou 1070 quilômetros, caminhou pela rua onde fica minha casa, entrou pelo portão, cumprimentou minha família e se instalou bem ali, no centro da sala e em cima da mesa que não gosto. Fora avisado de que eu demoraria, mas não deu importância a mim, assim como também não deu aos olhares curiosos daqueles que passavam ou que ficavam pelo lugar. Pardo, imóvel e em silêncio o fantasma aguardou minha chegada.

À tarde, quando ligaram-me para avisar do ocorrido, experimentei pelo corpo inteiro o sabor estranho de toda aquela confusão. Tudo porque eu pedi aquele encontro desejando, o tempo inteiro, que ele nunca acontecesse. Deste modo esperei com o coração apertado e os olhos apagados, embora brilhantes de lágrimas, a chegada daquela noite e, com ela, a hora da volta para casa e do encontro que enfim se fez.

Vi-me então, frente a frente ao fantasma que eu mesma construí por conta de meus medos. Peguei-o pelas mãos e juntos subimos as escadas, caminhamos, em passos lentos, sofridos e tristes rumo à cegueira branca de meu quarto. Cúmplices, nos olhávamos em busca de cada detalhe, e em mim estavam as marcas de uma velhice que me tomou de súbito nos últimos meses, as marcas do preço que se paga por errar, por falar a verdade, por amar.

Recebi um pacote triste, endereçado com aquelas letras pequenas e descoordenadas, porém delicadas, que por muito tempo me trouxeram alegria em encontrá-las. Dentro dele estavam todas as cartas que escrevi a alguém nos últimos dois anos de nossas vidas. Estavam as memórias de nossos sentimentos mais sinceros em cores, palavras, papéis. Estavam as expressões de um amor que transformou a mim, embora não seja reconhecido.

As memórias me são muito importantes, são o meu grande apego. E é exatamente daí que surge o maior de todos os meus medos, o do esquecimento, o dos outros em relação a mim e, principalmente, o meu próprio. Por isso não queimo cartas, rasgo fotografias ou apago e-mails, por não conseguir parar de pensar, um minuto sequer, que esses registros podem me ajudar a lembrar de minha própria história.

Há alguns dias soube que as lembranças do maior amor que vivi estavam sendo apagadas para sempre. Diante da loucura manifestada por meu coração e minha mente, pedi as cartas, os fragmentos de minhas memórias. Mas a verdade foi que recebê-las trouxe-me tanta tristeza quanto imagino que me traria se soubesse que elas não mais existiam. A chegada das cartas representou o desfazer-se de um passado que preferiam não ter vivido.

Este fantasma saiu de lá para ficar aqui, guardado no relicário que construí, fazendo-me lembrar o preço que hoje pago pela insensatez de quem não queimou seu último navio ao aportar. Isso por puro medo da dor, medo que fez sofrer quem amava, me fazendo por isso sofrer mais do que algum dia pude imaginar que o faria. Entristece-me muito saber que de tudo, foram as más lembranças as que ficaram lá.

Quanto a mim, guardo as boas memórias. Porque tal como um dia disse Drummond, "as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão".

*Para sentir, sugiro complementar a leitura com a composição de Vinícius de Moares e Toquinho clicando aqui.

domingo, 16 de maio de 2010

À Helena de minha História

Fragmentos de minhas memórias.
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Ouso dizer que a Helena da história que hoje contarei tem umas pitadas de singeleza, como aquelas que Manoel Carlos põe quando cria as suas, e outras de força, semelhante a daquela que foi o motivo de uma guerra de proporções homéricas envolvendo gregos e troianos.
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A Helena de minha História talvez não imagine que lembro bem a primeira vez em que a vi. Tinha algo como três ou quatro poucos anos e, depois de todos aqueles dias da viagem que me trouxe do Rio de Janeiro até o Maranhão, não conseguia me concentrar em outra coisa que não fosse a sua mão.
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Isso porque havia nela algo delicioso e igualmente lindo. Estava envolto por dois papéis, um metálico e outro vermelho, e eu o ganhei. E assim ela me conquistava para sempre, isso porque minha regra diz que têm coração bom os adultos que levam um chocolate para presentear uma criança em seu primeiro encontro.
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De lá para cá, aquele vermelho, que para mim é a cor do amor, sempre se fez presente, fossem nas marquinhas de benção que ela deixou ao longo da História em minha mão direita, ou naquele creme que aparentava ser de morango, tinha sabor de graviola, mas que no final das contas era de murici. A alegria de nossa tarde!
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E alegria é uma palavra que define bem esta Helena. Alegria na força, alegria no amor ou mesmo alegria na dor. Todas essas características a ela que é mãe, sempre. Mãe, ainda que seja filha, irmã, tia, esposa ou avó. Família. São sorrisos, paz, abraços e amor, todos de mãe. Por isso, sinto-me novamente filha se é ao seu lado que estou.
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À Helena de minha História, uma das maiores admiradoras daquilo que algum dia pode vir a ser Literatura, dedico em palavras uma parte de minhas memórias como expressão de todo o amor, carinho e admiração que por ela sinto. Hoje, o dia em que ela aniversaria, sinto-me, assim como muitos, contemplada por este presente da vida.
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Tia Helena,
de todo o meu coração, desejo-lhe uma vida longa de alegrias.
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Um abraço imenso de sua sobrinha,
Camila Chaves
 
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