quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Um tempo desconectada


“como os acidentes de trânsito, alguns desenhos
e algumas paixões bloqueiam por horas avenidas
inteiras dentro da gente.” – Raisa Christina

Quando percebi que estava desaparecida, eu quis chorar de tanta ansiedade. Aconteceu que um problema no sistema impossibilitou que chegasse até mamãe o comunicado sobre minha viagem ao sertão. Uma campanha de busca foi aberta e uma corrente de especulações foi iniciada. Imagens compartilhadas, mensagens não entregues, ligações não completadas. 

Ainda na estrada, passado o nervosismo e o constrangimento da notícia sobre o meu próprio desaparecimento, me peguei a pensar em coisas muito vãs: qual terá sido minha foto de gente desaparecida? qual foi a real proporção desse tal sumiço? será que aquela moça me escreveu? A foto era bonita; a proporção foi grande – para o meu desespero –; e ela me escreveu.

Mas não falou de sentimentos. 
Ela falou de coisas tão vãs quanto eram aqueles meus pensamentos.

Coincidentemente ou não, uma das notificações falava sobre um convite para o lançamento de um livro chamado “mensagens enviadas enquanto você estava desconectado”. Achei que fosse piada da turma por aquela situação que agora nos causava riso. Mas o livro era real. Fui ao lançamento, vi Raisa Christina pela primeira vez e quis compartilhar com ela aquela história.

Olhei nos olhos dela e só consegui sorrir.

“Camila, obrigada pelo lindo sorriso”, veio na dedicatória. Então, ficou em mim a sensação aliviada de que alguma coisa aquele silêncio tinha conseguido dizer. O livro passou um ano aqui na mesa. Igualmente silenciado. Demorei para ler até decidir fazer isso em um desses meus movimentos de desconexão para deixar fluir os pensamentos e os sentimentos.

A narrativa, as histórias, o traço. Faz um tempo que não escrevo e nem desenho nada. “mensagens enviadas enquanto você estava desconectado” me fez ter de novo essa vontade.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Pupila


Mesmo depois de se ter pingado três gotas de colírio em cada olho, a pupila do lado direito apresentou certa resistência em dilatar. Mas, tendo tudo ocorrido conforme esperado e passada a consulta oftalmológica, saí do consultório curtindo bastante aquele barato momentâneo sobre não conseguir enxergar quase nada da cidade que se avizinhava. Uma vez, ouvi um amigo, também míope, dizer que, às vezes, era melhor não tentar enxergar. Tirei isso do literal e trouxe para a vida real propriamente dita. E fui caminhando. De óculos escuros, atravessei a faixa de pedestres e segui até a parada de ônibus enquanto ensaiava alguma falação. Em meio aos vultos e a um punhado de gente anônima, me chamou a atenção uma moça. Estava de costas e usava uma camisa cinza ilustrada por quatro ícones e alguma palavra que eu não conseguia ler. Eram os Beatles. Ninguém tinha rosto. Conheci pelo formato dos cabelos. O dela, por sinal, estava preso para trás com uma liga verde cana (que não combinava com nada). Gostei dela por conta dos Beatles. Pensei em aproveitar a situação, sugerir que precisava de ajuda e pedir para que ela lesse o letreiro do ônibus que se aproximava. Fiquei pensando que ela jamais pensaria que isso acontecia porque eu não sabia ler. Especulei tanto, que acabei preferindo apertar os olhos e deduzir que, pelo formato das palavras, era chegada a minha hora. Arrisquei. Ela fez sinal. Eu também fiz. Eu entrei primeiro. Ela me seguiu. Eu sentei em uma cadeira na parte de trás quando o vulto dela passou por mim e foi sentar-se lá na frente. Fiquei a viagem inteira olhando para o vulto da moça e para os Beatles que estavam na camisa dela, até chegar a minha vez de saltar. Agora seria eu, pessoa física, quem iria passar pelo vulto da moça. I want to hold your hand na cabeça. Pensei em dizer: Desce comigo. Me leva para casa. Mas eu era tímida demais. Preferi chegar só.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Detalhes

A imagem, o cheiro, a cor, o sabor. Somos feitos de memórias e eu morro de medo de perder as minhas. Não de esquecer feitos imensos ou acontecimentos sob a luz dos grandes holofotes. Porque para esses terá havido sempre mais que um par de olhos de passarinho que os pudesse testemunhar. Falo daqueles relativos às coisas minoritárias, ao que é pequeno.

Quando papai decidiu fugir do desemprego indo embora do Rio de Janeiro para o Maranhão, mamãe deixou para trás tudo o que ela tinha. E o tudo agora se resumia a nós três e ao nosso neném pequeno, a minha irmã. Papai tinha cheiro de mar e pele corada de pescaria. Havia dificuldades ali, mas das coisas simples e bonitas, o nosso cotidiano se fazia.

A gente sentia falta. A gente escrevia cartas. A gente sofria de ausências. Quando papai não embarcava em rebocador de navio, subia em canoa e pescava. Nos finais de semana em que ele não estava, mamãe fazia galinha frita, farofa e salada de maionese para servir com o arroz e feijão preto de todo dia. Então ela arrumava a mesa e ligava o rádio para a gente ouvir a música tocar.

Havia um programa que passava naqueles dias e que reproduzia somente músicas de Roberto Carlos. Isso enfeitava o cenário da casa emprestada onde a gente morava e partilhava a nossa resiliência tão feminina. E a cada bloco, a vinheta vinha e a letra dizia: “Não adianta nem tentar me esquecer”. E foi percebendo o que ela sentia que descobri o que a saudade era.

Eram detalhes.
Eu lembro disso. E sinto saudades.
 
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