terça-feira, 12 de agosto de 2014

No cinema, a minha primeira vez

Ao sair de lá, é preciso abrir bem os olhos e levantar bastante os pés ao caminhar, porque tudo parecerá maior do que realmente é.

Não sei o que mamãe tomava em suas idas ao cinema, mas o fato foi que a cartilha que ela rezou antes de nos levar pela primeira vez ao Cine Passeio, não foi lá muito condizente com a realidade. Tudo bem. Era uma sala confortável, com uma televisão grande e não podia pedir para acender a luz. Minha irmã pediu. Quase morri de vergonha! Mas isso não foi o mais importante.

Entrei no cinema ansiosa para sair. Mas, ao sair, nada aconteceu.

Pensar no pós-cinema descrito por mamãe, por muito pouco não me roubou a experiência de ter “Uma Babá Quase Perfeita” como meu primeiro filme assistido na grande tela. Tirada a ansiedade infantil e os problemas que eu nem imaginava que a gente tinha, naquela São Luís de 1993, o Robin Williams travestido de babá quase nos matou de tanto rir. O curioso é que agora ele se foi, e me disseram que de tristeza.

De repente fez sentido.

É preciso abrir os olhos e levantar bastante os pés ao caminhar, porque tudo parecerá maior do que realmente é.


quarta-feira, 25 de junho de 2014

Foucault no Mercado Joaquim Távora

Foi saboreando o melhor bolo mole da cidade que conheci dona Joana D’Arc. Com um copo de café e leite em uma das mãos e à procura de um lugar de onde eu pudesse ouvir as conversas alheias, interrompi sua leitura diária de jornal e perguntei se poderia sentar à sua mesa. Respondeu que sim.

Não demorou muito, foi ela mesma quem interrompeu sua leitura e comentou indignada sobre a resposta truculenta dos governos contra um setor que estava em greve no estado. Eram ainda os ventos de junho soprando as folhas das árvores do Joaquim Távora.

Fiquei animada e segui ouvindo, bem mais do que falando. Mas aí deu a hora de pegar o ônibus e ir para o trabalho. Então me despedi com alegria e promessa de lhe adicionar naquela rede social para uma extensão virtual dos nossos diálogos. – Joana D’Arc. Você coloca lá e vai ver. Estou de óculos escuros e com um bonezinho. –, descreveu.

Não encontrei Joana D’Arc. Ou melhor, encontrei Joana D’Arc de tudo quando foi parte do mundo! Mas nenhuma era a que tinha um armarinho no mercado. – Um armarinho de vender utensílios domésticos. Coisas de casa, sabe? – bem do jeitinho como ela falou. Me deu foi uma tristeza, ainda mais porque os cafés dali em diante nunca mais foram os mesmos sem sua presença.

Até que um dia, recebi em casa uma visita vinda lá de São Luís. Era final de semana e o fósforo acabou. – Vou ali embaixo ver se encontro. – E desci. Como tudo estava fechado, resolvi caminhar mais uma quadra e ir até o mercado. Já nem lembrava mais de dona Joana D’Arc quando a vi vendendo um conjunto de pratos a uma outra senhora. Sorrimos e ficamos muito contentes!

– Camila! Que bom encontrar você por aqui! Olha, você não me adicionou.
– Que surpresa boa! Mas, deixa eu lhe dizer: eu tentei tanto...
– É muito fácil! É só colocar “Joana D’Arc” que vai aparecer minha foto. Estou de óculos escuros e um bonezinho.

E eu só lembrava do bonezinho. Pedi a ela que anotasse meu nome em um papel para que ela mesma pudesse me adicionar. Afinal de contas, haveria de ter menos Camila Chaves que Joana D’Arc mundo a fora. Me pediu para sentar e conversar um pouco e eu disse que não podia por conta da visita que me aguardava chegar com os tais dos fósforos. Compreendeu bem e se prontificou a me acompanhar até a saída do Mercado.

– E como é que a senhora está? Como vai a vida?
– Estou bem e terminando minha monografia.
– É mesmo? Que coisa boa. E sobre o que a senhora está escrevendo?
– Sobre o segundo livro de A História da Sexualidade, de Michel Foucault.
– Caramba, não acredito!

Cheguei à porta do Mercado com os fósforos na mão e a cabeça revirada de ideias.

Recordo-me de um dia ter concluído, que, mesmo tendo sido Foucault costumeiramente relacionado a um conceito de poder mais macro, a mim interessou mais a micropolítica como contribuição. Uma política mais molecular, que ganha forma nas relações cotidianas, como numa conversa de mercado ou no encontro com uma gente que anda por aí carregando um monte de histórias sem ninguém nem saber, feito dona Joana D'Arc.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Ciço na guerra dos rebeldes


Querido Flávio Paiva,

Há algum tempo, li a reflexão de uma amiga – hoje jornalista – que, entre outras coisas, falava sobre como a História carece de uma narração jornalística. Fiz dessa afirmação a chave para o entendimento de toda minha dificuldade juvenil em compreender os episódios tidos como dignos de fazer parte da História. Talvez por isso me animem tanto os livros escritos por jornalistas. Foi assim meu encontro com uma trilogia sobre mitologia Grega, publicado pela Super Interessante e, mais recentemente, com Ciço na guerra dos rebeldes, de tua autoria e ilustrações de Angelo Abu.

Nestes três poucos anos em que vivo no Ceará, pude ouvir algumas muitas histórias. O fato foi que algumas delas roubaram muito mais de minha atenção que outras. Interessava-me saber mais do por que Padre Cícero era considerado uma figura controversa e, principalmente, sobre essa sua relação tão estreita com o famoso Lampião, de sobrenome Ferreira, feito eu. Só não busquei mais relatos por conta daquele meu pé atrás com as leituras sobre memórias históricas. Foi quando, de repente, soube do lançamento de teu livro.

Ciço na guerra dos rebeldes me fez passear por um universo um tanto quanto desconhecido. Juazeiro, onde vivem ou de onde vieram alguns de meus grandes camaradas, jamais imaginei ter sido um dia considerada terra de gente desacreditada, refúgio dos náufragos da vida. Não sabia também que o batalhão organizado por Cícero era para lutar contra os ditos comunistas. Pensando cá com os meus botões, eu era que não iria querer ter a má sorte de ter que lutar contra um exército abençoado por aquele “padim”!

As ilustrações deram ainda mais vida a uma leitura que já seguia leve e trazia muito de História ao meu cotidiano. Passaram a fazer mais sentido, por exemplo, as fotografias que por vezes vi em exposição na entrada da sala de cinema da Casa Amarela: um Lampião com sua Maria tão Bonita e até sua cachorra Baleia! Cena cotidiana do cangaço. Fiquei pensando nele como poeta e bordador, assim como fiquei também pensando no Ciço, mais que personalidade histórica, uma figura insurgente e cheia de contradição. Bem como tu disseste naquela dedicatória.

Um dia desses ainda vou a Juazeiro, mas enquanto fico por aqui, te agradeço por essa viagem. Um abraço imenso e até as próximas leituras.

Camila Chaves
Fortaleza, 21 de abril de 2014.

As cartas de Gabriel


Naquela altura do campeonato, eu já conhecia o gelo e minha bicicleta branca de selim e guidão vermelhos – agora sem rodinhas – era o meio mais interessante para produzir olhares sobre o que não era o Rio de Janeiro. Da São Luís do início dos anos noventa partiam minhas primeiras correspondências de frases pequenas, grandes saudades e quase solidões.

Quase quinze anos mais tarde, eu conhecia Gabriel García Márquez por meio da obra que destroçou sua vida: “Cem anos de solidão”. Descobria assim um autor muito político e, sobretudo angustiado pelo peso de não mais poder, de maneira espontânea, dizer as coisas do mundo. Porque descobrir que alguém vendeu cartas suas deve ser mesmo uma dor muito grande. Por isso deixou de escrevê-las.

Em mim, dada a relação tão estreita com as correspondências e, de modo mais declarado ainda, o medo que tenho da falta das memórias, a notícia sobre a venda das cartas de Gabriel só não doeu mais que aquela que dizia que o autor estava perdendo a memória. Aí chegou o 17 de abril para fazer doer mais ainda em saber que fomos nós quem perdemos um grande escritor.

Por aqui, a solidão já fez morada. Já não é mais São Luís e correspondências chegam de muitas partes. Trazem lágrimas, contam sonhos, apontam planos, revelam saudades. Já não há mais bicicleta branca de selim e guidão vermelhos para poder bem ver a cidade, só janela de apartamento e muitos cubos de gelo dentro de um copo com água. E saudade.


Fortaleza, Ceará, 21 de abril de 2014.

domingo, 20 de abril de 2014

Querida Formiga

Desde o dia em que te vi devorar um tablete de caldo lá na cozinha, percebi que algo não estava muito bem. Compreendo que, quando em coletividade, podemos até cometer atos que jamais nos passariam caso vivêssemos uma vida de solidão. Mas as ações de vandalismo realizadas durante as “festinhas” diárias que acontecem em minha casa sem o meu consentimento, confesso: não consigo compreender.

Da última vez, tive que passar por um constrangimento imenso! Isso porque as tuas amigas não só tiveram a audácia de me retirar da cama enquanto eu dormia, como abriram a porta da sala e me puseram do lado de fora do meu próprio apartamento! O danado foi ter que acordar com o sol na cara e ainda ter que explicar para a vizinha o que era que eu estava fazendo abraçada com a grade do portão dela.

Mas, sem ressentimentos. E que fique claro: eu não tenho nada contra o fato de tu seres formiga. Eu até tenho amigas que são. Por isso te escrevi esta carta em tom tão preocupado. Sendo assim, quando receber, me avisa e aparece aqui em casa para a gente tomar um café e conversar sobre a vida.

Prometo que ponho bastante açúcar para não ter que te ver sucumbir novamente a um salgado tablete de caldo.

Com afeto,
Camila Chaves.


Texto publicado no Blog quando receber, me avisa em 13 de abril de 2014.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Desentendimentos

Passou pela porta com o cigarro entre os dedos e parou próximo à janela da sala, onde se encostou. Organizou a carteira e o isqueiro, observou tudo em volta e manifestou algumas poucas palavras. Retomava-se assim nosso diálogo que, após tempos em desuso, seguia como de costume, cheio de conflitos e identificações.

– Gostei da mudança. Acho que vou dar um presente para a casa.
- É? O quê?
- Minha mãe...

Parou, levou o cigarro até a boca, fez uma conchinha com uma das mãos, riscou o isqueiro e tragou. Mas tragou como quem respira após uma longa série de nado submerso ou como quem suspira disfarçadamente. Fez tudo isso enquanto me ouvia suplicar por informações, exclamar um milhão de coisas e questionar suas ideias absurdas. E tão somente então, aliviada, completou:

– ...faz uns quadros ótimos de tapeçaria.

Passeio Público

Um passeio público é assim: tu escreves em um papel de forma livre, sem critérios sobre fonte, recuo ou espaçamento. A única coisa que se pede é que sejam feitas, no mínimo, três manifestações. Por sugestão, essas podem ser no flanelógrafo do prédio, na padaria da esquina e no mercadinho de dona menina. Pede-se também que a manifestação seja feita com, no mínimo, trinta minutos de antecedência. Se, durante esse período, ninguém se revelar contra a ação, pronto. Tudo feito. Do contrário, não há passeio público. O que não quer dizer também que não há passeio. Mesmo porque nem todo passeio precisa ser público. Ele pode ser escondido, uma passeada oculta, um role clandestino ou, simplesmente, uma fugidinha. 

- Comunicamos a quem possa interessar que estamos indo passear.
 
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