sábado, 24 de novembro de 2012

E nem era carnaval

Em luta por Lucas Fortuna e tantos outros

A ressaca não passou. Tudo dói. Ainda lembro. – Vou começar assim: meu nome é Lucas Fortuna, sou estudante de jornalismo da UFG, sou militante da Enecos e sou gay. Era janeiro de 2006 e a tarde estava cheia do calor da cidade de Recife. Estávamos no Congresso Brasileiro de Estudantes de Comunicação Social (Cobrecos) e ele mediaria o Grupo de Estudos e Trabalho de Combate às Opressões. Era a minha primeira vez.

Desculpa, só uma questão: homossexualismo, não. Homossexualidade. Me dizia gentilmente enquanto batia, de forma insistente, na tecla que falava sobre a importância de se autoafirmar. Era aquela a reivindicação sobre uma forma outra de nomear. Era política. Na última noite daquele congresso, ele, brincalhão que era, rifou uma saia amarela. Uma menina a ganhou. – De-vol-ve! De-vol-ve! De-vol-ve! Os estudantes pediam. Ela devolvia. Ele sorria.

Encontrei-o novamente em 2007, durante o Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual (Enuds), que aconteceu em Goiânia. Relembramos as polêmicas e piadas dos tempos da Executiva. Militamos. Dançamos. Ao final do encontro foi feita uma homenagem às mães que estavam ao lado de seus filhos na luta contra a homofobia. Ele estava no palco ao lado da sua. Eram belos e sorriam. Ficou-me essa lembrança.

Em meados de 2009, durante o Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação (Enecom), em Fortaleza, tive como tarefa a elaboração de um material que fizesse o resgate da história do movimento pró-saia. Como ele havia sido seu criador, conversamos por telefone. – Não, não foi nada disso. Disseram que sofri preconceito, que fui espancado. Isso nunca aconteceu. Essa história virou lenda urbana no movimento estudantil! – contava sorrindo.

Tive que refazer todo texto. No dia seguinte, o material circulou. A turma ficou desapontada com a revelação da verdadeira história! Depois acharam graça e isso contribuiu para fazer a discussão entre os estudantes. Ainda que não tivesse sido naquele caso específico, o preconceito contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais seguia e segue sendo manifestado por meio de uma violência que nem sempre era/é simbólica, mas também física.

Na época, interessava-nos resgatar o sentido do movimento porque incomodava-nos o uso, a nosso ver esvaziado, que alguns estudantes faziam das saias durante os encontros de comunicação. Parecia menos político, mais carnaval. – Olha, vivemos em uma sociedade tão machista que, se formos pensar bem, só o fato de um homem usar saia, mesmo no carnaval, já é representativo de uma ruptura, ainda que seja pequena. Dizia.

Há algumas semanas eu lia Terça-feira Gorda, de Caio Fernando Abreu. Terminava assim: “E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos”. Chegou o domingo e no final da tarde tive uma notícia muito ruim: Lucas Fortuna foi encontrado morto em uma praia pernambucana. Espancado, esfaqueado, despido. Carteira de identidade rasgada sobre o corpo. E nem era carnaval.

Aquilo foi feito um tapa na cara da gente que vive dizendo que não sofre a violência física que a homofobia imprime com muito mais força, claro, em quem está nas periferias, em quem não pode transitar pelos lugares onde se pode amar, onde se pode ser. O Brasil é o país que mais mata homossexuais. Ao mesmo tempo, as escassas iniciativas para combater o preconceito são vetadas, e a homofobia sequer é considerada crime.

Em uma sociedade em que as pessoas e suas relações são transformadas em coisas, em que as diferenças de gênero, raça e sexualidade são utilizadas para intensificar ainda mais a exploração, não se posicionar contra essa mesma sociedade e toda forma de opressão que a sustenta, é também um crime. Quantos outros como Lucas Fortuna precisarão ter a vida violentamente tomada para que uma multidão siga em sua confortável ilusão?

Paro e penso: poderia ter sido eu, tu, teu filho, irmão, primo, sobrinho, tio, companheiro, amigo, amor. Como não se posicionar? Juntos somos tantos. Somos implicação, afetação, potência de luta. Somos pessoas: corpo e sentimentos. Talvez ele nem tivesse a dimensão do quão importante foi aquele primeiro contato para mim, do quanto aquela postura, por mais minoritária que pudesse parecer, me faria mais tarde refletir sobre tantas coisas.

Então, para que não restem dúvidas e para que com outros possamos um dia por fim a tudo que causa essa ressaca absurda que parece não querer passar, vou terminar dizendo assim: meu nome é Camila Chaves, sou Relações Públicas, sou militante, sou bissexual e luto.
 
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