sábado, 31 de maio de 2008

Gamei no Gamar

Foto por Paula Camily

Gamar é verbo ora transitivo indireto ora intransitivo que, segundo o dicionário, pode ser traduzido como paixão ou encantamento. Popularmente falando, é ficar louco, alucinado, com os quatro pneus arriados. Pouca gente sabe, porém, é que mais que um verbo formado por cinco letras, gamar tem também um sentido que se refere à transformação.
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Gamar é a sigla para Grupo de Arte Maria Aragão, que nasceu há sete anos no bairro da Cidade Operária. Atualmente o grupo é composto por trinta e cinco pessoas com faixa etária entre dois e vinte e cinco anos, que trabalham a arte como forma de transformação de uma difícil realidade.
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O idealizador do grupo, Wilson Chagas, na época professor de Educação Artística da escola Unidade Integrada Maria José Aragão, conta que, em suas aulas, começou a perceber que os estudantes tinham verdadeira aversão à disciplina que ensinava, além de uma grande dificuldade de leitura.
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Percebido tal problema, uma alternativa encontrada foi a de trabalhar a interdisciplinaridade. E assim, a sintonia causada pelo trabalho conjunto entre as disciplinas de Arte, Língua Portuguesa e História permitiu aos estudantes compreensão, contextualização e interpretação de situações diversas. Nascia então o primeiro recital de poesia da escola, o Palavras ao Vento.
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As crianças se envolveram de tal forma na atividade que foram convidadas a mostrar seu trabalho em um evento acadêmico de Letras, sendo em 19 de abril de 2001 a primeira apresentação oficial do grupo. “Foi muito tocante saber que muitas daquelas crianças nunca haviam sequer passado da ponte do São Francisco. Durante o trajeto que fizemos no ônibus, olhando a reação delas e ouvindo seus comentários, percebi o quanto elas haviam aprendido com aquela experiência.” Conta Wilson.
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Notou-se então a necessidade de dar uma identidade aos que haviam se destacado naquela atividade, o que viria a originar o Gamar. Wilson conta que no início houve muita dificuldade em continuar aquele trabalho, uma vez que, a própria administração da escola caracterizava como tumulto o projeto.
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Após sua implementação, verificou-se que a mudança na dinâmica da escola se dava de forma positiva, uma vez que serviu para despertar talentos e, mais ainda, pelo alcance que havia ganhado. Assim, o que teve início com um recital virou um Festival de Poesia, o Poemar, que este ano vai para sua oitava edição.
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Em 2003 o Gamar chegou a ganhar todos os prêmios do Festival Maranhense de Teatro Estudantil com o espetáculo Sonho de uma noite de verão, de Willian Shakespeare. Hoje, o grupo domina técnicas de circo, teatro e dança e apresenta espetáculos como Receita para se obter uma boa mãe, com palhaços pequeninos e lindas bailarinas e suas roupas coloridas; Baião de Dois, com dança do côco e outros ritmos regionais; O desejo de Catirina e um dos destaques, a quadrilha teatralizada, onde a ausência da fala é suprida pela construção cênica do ato do casamento e ainda .
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Wilson conta que gostaria que o Gamar pudesse acolher outros tantos integrantes, mas que dificuldades de ordem financeira e estrutural impedem que isso seja feito. Gastos com figurino, transporte e alimentação dos participantes em dias de espetáculo são pagos com sua renda pessoal. Tais limitações têm impedido o sonho e a necessidade de profissionalização do grupo, que utiliza o salão paroquial da Igreja São João Calábria para montar seus espetáculos.
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Mais que uma atividade de voluntariado, o trabalho desenvolvido pelo Gamar é de transformação social, uma vez que tem feito despertar uma cultura de troca de experiências e possibilitado, por meio da arte, a construção de uma nova e positiva identidade cultural para o bairro da Cidade Operária, tão marcado por seus inúmeros problemas sociais.
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Desta forma, acredito que um significado para Gamar esteja além das palavras encontradas nos dicionários. Aqueles sinônimos são poucos quando o que se quer expressar são, na verdade, sentimentos. Sentimentos esses tão evidentes no brilho dos olhos, nas expressões corporais e nas palavras daqueles que compõem o grupo e que são orgulhosos de seu trabalho. Sendo assim, fico com a definição que o grupo leva como lema, a que diz que “Gamar é arte e amor em excesso”.

domingo, 18 de maio de 2008

68 para ser sentido

Por mais que eu tivesse tentado, nunca consegui explicar com palavras determinados sentimentos. Um frio te toma as pernas, ganha o alto da barriga e enquanto a boca seca, não mais saliva, os olhos se umedecem com lágrimas e os pêlos dos braços e da nuca suspendem como se quisessem saltar do corpo.
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Era assim quando criança: bastava ouvir uma música, assistir um filme ou ler algo relacionado às lutas populares ou revoluções, que todos aqueles sentimentos me vinham com uma força cada vez mais crescente. Foi então quando comecei a me questionar sobre a origem da força e da vontade que algumas pessoas têm em defender determinadas causas.
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Entre todas as possíveis respostas que meus pensamentos trouxeram sobre este questionamento, decidi ficar com aquela que, pelo menos aparentemente, pode ser vista por alguns como a mais simples ou mesmo a mais infantil de todas elas: a da pequena semente.
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Acredito que cada pessoa tenha dentro de si um montão de sementinhas. Estas, por sua vez, precisam tomar sol, serem regadas e bem cuidadas para que cresçam fortes. E um-montão-de-sementinhas são, pelo menos em minha cabeça, uma porção de sentimentos. Por que é então que com o sentimento revolucionário as coisas seriam diferentes? Não tem mesmo por que.
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Manifestações, atos de coragem e de luta por uma coletividade seriam então o sol, a água e os cuidados dessa semente que alguns trazem desde cedo dentro de si, como aqueles jovens estudantes que, há 40 anos, sem distinção de etnias, culturas, idade ou classe, tomaram as ruas do mundo para lutar por direitos, levando o país a uma greve geral.
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O maio, que por muitos é somente lembrado como o mês das queridas mães ou das bonitas noivas, foi também em 1968, um mês marcado por lutas em prol de transformações sociais, culturais e políticas. Foi o mês em que em uma única manhã, mais de um milhão de pessoas foram às ruas de Paris em solidariedade a um movimento estudantil combatente e reprimido por forças policiais francesas.
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Quarenta anos depois, a mesma reforma do ensino superior que serviu para mobilizar os estudantes do maio francês, foi o que pareceu despertar o movimento estudantil brasileiro da inércia vivida nos últimos anos. A diferença? Hoje, somos poucos, fragmentados e muitos até mesmo descrentes de que uma revolução seja realmente possível. Eu sonho e acredito em uma revolução. Precisava falar sobre isso hoje. Gostaria que o maio de 68 pudesse não somente ser lembrado, mas sim, de alguma forma sentido.
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Coincidência ou não, no início do ano em que a mais bonita das revoluções completa suas bodas de rubi, foi quando a sementinha que carrego, desde a infância, dentro do meu coração vermelho, pôde receber a sua maior dose de sol, água e cuidados. Mas, essa parte deixo para contar em outra oportunidade. Por enquanto, termino com a sensação de que realmente não sei falar de sentimentos e com uma frase que penso que expressa muito o que sinto.

"Eu tenho a paixão das causas difíceis, quase perdidas, quase desesperadas." Daniel Bensaïd

domingo, 11 de maio de 2008

Bi bi bi biiiii

No início de minha infância, quando comecei a compreender as coisas que se passavam ao meu redor, descobri que queria ser pediatra. Talvez porque eu tivesse me encantado com aquele doutor tão gentil e velhinho, cujo consultório tinha em sua parede um quadro com um palhaço e seus balões coloridos em frente a um circo. Mas isso passaria logo, especialmente quando eu descobrisse que o que eu realmente queria ser quando crescesse era motorista de ônibus.
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O fascínio das coisas habita exatamente na simplicidade e, para mim, o ato de dirigir era simplesmente fascinante. Poderia passar horas e horas a observar alguém dirigindo. Mas nem tudo era tão simples assim, afinal, como fazer para o carro dar a ré? Confesso que muitas vezes sonhei estar dirigindo e ter encontrado o tal do botão que além de secreto era vermelho. O botão que fazia o carro dar a ré. Acordava, corria para a garagem da casa de vovó, entrava no carro, e... Cadê o botão? Aquele que eu vi no sonho? Não existia. Alguém deve ter tirado ele de lá enquanto eu dormia.
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Eu queria dirigir, mas não sabia dar a ré. A solução para o meu problema encontrei decidindo, de uma vez por todas, que eu seria motorista de ônibus quando crescesse. Afinal, os ônibus não precisam dar a ré! Pelo menos na minha cabeça infantil eles não precisavam. Anos depois, quando já não mais pensava em ganhar a vida dirigindo ônibus e já sabia como se fazia para dar a ré em um carro, descobriria que os ônibus às vezes também precisam dar uma andada para trás.
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Resgatando esta lembrança e algumas outras recortadas e coladas em algumas conversas, descobri o quanto os ônibus estiveram presentes em minha vida até aqui. Ou alguém esqueceu, por exemplo, que na pré-adolescência eu seria a menina que tinha vergonha de puxar a cordinha para pedir parada? Só para se ter uma idéia de até onde vai essa história toda entre os ônibus, a timidez e eu, conto até que já caí dentro de um deles, e pasmem: caí porque achava que segurar nos ferros chamaria atenção dos passageiros enquanto me dirigia até a porta de saída. E acreditem, minha queda não foi nada discreta.
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Já peguei ônibus errado, também. Vários deles. Pegar ônibus errado era quase que uma rotina. Mas a mais traumatizante de todas as vezes foi aquela em que eu fui parar sozinha no ponto final de um bairro estranho e desconhecido. Todas as pessoas desceram, a cobradora desceu e o motorista desceu, também. Eu, como sempre muito discreta, resolvi esperar enquanto eles retornavam. Escurecia e, como se não bastasse, o motorista veio caminhando para o ônibus, mas não foi para sair e sim para apagar a luz. Ninguém me viu lá dentro. Para não me estender, não contarei mais detalhes desse momento angustiante por aqui, mas acreditem, o desfecho também não fora nada discreto.
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Isso me faz concordar com um amigo que diz que o que mais chama a atenção nos tímidos é seu excesso de descrição. Fiquei me imaginando sentada na terceira cadeira do corredor, na fila esquerda do ônibus. De repente, entra uma senhora. Então, diante daquela situação, eu levanto e começo a discursar em voz alta:
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/Atenção senhores passageiros! Neste exato momento eu, cidadã consciente dos meus direitos e deveres, abro mão do meu confortável lugar neste coletivo para que esta senhora, na verdade esta anciã, sofrida por ter vivido tantos anos de vida, possa se sentar e seguir sua viagem de forma tranqüila e prazerosa. Eu poderia estar matando, poderia estar roubando ou poderia estar olhando para a janela e fingindo que não a vejo, mas não! Estou aqui cedendo meu lugar a ela. /
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As pessoas do ônibus batem palma, jogam confetes, tiram fotos e eu fico sendo conhecida como o exemplo de jovem educada e cidadã. Tsc. Que cidadã que nada. Essa tal de modinha de cidadania. Até parece. Paremos de imaginar. Eu levanto, não pergunto se a senhora deseja sentar, vai que ela seja tímida, também e fique com vergonha de falar, nunca se sabe. Sigo para a porta traseira do ônibus, como se fosse descer na próxima parada. É melhor assim. Mesmo que ainda faltem centenas de outras paradas e eu ainda precise ficar algumas horas dentro daquele que poderia ter sido meu local de trabalho.

sábado, 3 de maio de 2008

O zero notável

Em uma terra engraçada, onde árvores têm raízes quadradas e em meio a tantos naturais, inteiros, racionais ou não, vivia ele, o número Zero. Jovem, sempre muito discreto, quase nunca notado, o zero fazia com que os outros tantos números, meninos ou meninas, não percebessem a insatisfação que o tomava.
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Meninos ou meninas porque, na verdade, os números pares, com exceção do zero e do oito, que são rapazes, são todos do sexo feminino; assim como os números ímpares, com exceção do nove, porque eu nunca soube, na verdade, qual era a dele, são todos do sexo masculino. Mas este não é o real foco desta saga.
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O fato é que o zero morava em sua humilde casinha de parede de lápis, chão de borracha e teto de tabuada, localizada no Conjunto Universo, o que fazia dele um alvo constante de piadas por parte dos moradores, uma vez que as regras estavam claras e bem escritas naquela placa feita de régua que ficava no início da avenida principal com a seguinte inscrição: neste conjunto o denominador nunca pode ser zero.
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Pelas redondezas do Conjunto Universo havia um trio de playboys, composto pelos bonitos, mas nada educados, rapazes um, sete e um, que não perdiam uma oportunidade sequer de chatear o coitado do zero. Era um tal de “vamos dar uma voltinha” para cá, “vamos dar uma voltinha” para lá e essa situação toda se agravou ainda mais quando o zero resolveu militar na esquerda, afinal, o que poderia ser mais desprezível ou sem valor que um zero à esquerda?
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Nunca entendi direito essa história toda de “casal vinte”, mas fiquei imaginando, nesta situação, o dito romance e uma belíssima senhorita número dois a comunicar seu pai sobre seu namoro com o aqui descrito zero. “Quem? O zero? Aquele esquerdistazinho de meia tigela? Mas não mesmo, minha filha! Diga a esse rapaz que se ele for para a direita e de quebra conseguir uns parentes que o siga, a gente pode até conver$ar.”
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E aquela conversa toda já ganhava tons de sermão por parte daquele grande e robusto pai número oito, que só não era maior porque não se consegue escrever números em caixa alta. “Por enquanto, para mim e para todos os outros números por aqui, o zero não passa de um zé-ninguém! E além do mais, minha filha, ele é gordinho! Suspeito que você esteja andando com essas letrinhas ‘i’ em itálico, tem tomado atitudes que lhe fazem parecer um número complexo!”
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Como poderia então ser o zero um produto notável se, ao ser multiplicado por ele mesmo, punha em cheque qualquer tentativa de cálculo do quadrado da soma de dois termos? A resposta estaria ainda no campo dos símbolos, mas dessa vez, na esfera literária.
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E foi assim que o zero tomou a mais radical de suas atitudes: subiu no topo de um triângulo isóscele, atirou-se do alto e da luta não se retirou, negando assim sua própria classe enquanto número. Seguiu então para o alfabeto e foi viver todos os demais e infinitos dias de sua vida com o notável título de letra “o”. Sendo assim, necessito fazer com que todos saibam que a letra “o” não é uma letra, mas sim um número, na verdade, um zero liberto e feliz, e que rosquinhas são deliciosas homenagens a essa história de luta.
 
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