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Minutos antes, projetaram na parede do lado de fora do convento algumas fotos de todos daqueles vinte e três longos dias de toda a nossa vivência. Foram dias inesquecíveis. Em pensar que de início éramos apenas desconhecidos. Alguém vindo de alguma parte de Minas, do Brasil ou da América Latina em busca de uma experiência revolucionária. De algo transformador.
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E assim o foi. Dos sete dias de preparação, dos doze dias de vivência em acampamentos, pré-assentamentos ou assentamentos do MST, e dos cinco últimos dias correspondentes à fase de retomada, o último foi o mais doído. Todas aquelas lembranças, todos aqueles sentimentos.
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Se antes tínhamos conhecimento por meio dos livros de tamanha a opressão e as injustiças por que os movimentos sociais e populares passam, agora as marcas disso estavam minimamente expressas em nossos arranhões, picadas, calos e queimaduras de sol.
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Um arrepio imenso foi surgindo. Não havia como passar por tudo aquilo e ser simplesmente a mesma pessoa depois. Estávamos ali, de mãos dadas, quase que abraçados e a chorar. Uma fogueira, um barco de papel, um cesto de fitinhas vermelhas, a cor da revolução.
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Conta a História que na época do descobrimento das terras, um grande conquistador, ao aportar na América do Sul ordenou que seus homens ateassem fogo em seus navios para que não fossem traídos por suas próprias fraquezas e desistissem da luta para retornar às suas origens.
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As pessoas caminhavam pegavam um pouco de fogo na fogueira, ateavam no barquinho e diziam o que elas queimavam. “Eu queimo os pelegos!” Gritou um rapaz. “Eu queimo os burgueses!”, outro. “Eu queimo o capitalismo”. Eu queimei as opressões.
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Então, caminhavam até o cestinho de fita, pegavam uma e diziam o que plantavam. “Eu planto o socialismo!”. Falou uma menina em tom de ordenamento. “Eu planto uma sociedade mais justa!”, ouvi outro alguém dizer. Eu plantei a alegria. Uma genuína alegria. Uma alegria em forma de respeito, de companheirismo, de alegria, de felicidade.
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Aquele nada mais era que um dos muitos ritos de passagem por que cruzamos durante a vida. Diz-se de tais ritos que costumam ser preparações individuais ou coletivas que visam marcar pontos de desprendimento, o abandono de velhas atitudes e preparar para outras vivências, novas aceitações, em outras palavras, uma nova sociedade.
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Ali foi encerrado um ciclo e, ao mesmo tempo em que foi um final, foi também o começo, afinal, princípio e fim estão bem mais envolvidos do que muita gente pensa, tanto que muitas vezes é difícil saber onde um nasce para dar lugar ao outro.
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Recepcionei muitas turmas. Umas quatro ou cinco, pelo menos. E aquela idéia de que aquela seria a última foi me deixando com um nó na garganta. A semana passou e ontem, na sexta-feira, fiquei vendo os novos amigos que fiz nesse tempo de caminhada e o quanto me apeguei a eles.
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Após pedir moedas no corredor, fomos ao mercado central negociar os ingredientes para aquele o ponche. Será o último? Cada coisa parecia tão única. Cada detalhe. As ruas, os risos, as pessoas, os sorrisos. Ainda não consegui me acostumar com a idéia de ter que ir à Ufma apenas algumas vezes por conta de minhas novas atividades.
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Sentei no chão, no escuro e ao som da banda. Respirei fundo e pensei que talvez, se o carro não tivesse ar-condicionado e a janela do carro estivesse aberta enquanto fazíamos o caminho para o mercado, eu poderia ter falado do cheiro da maré do Bacanga ou da brisa do início de fim de tarde e assim, quem sabe, essa história tivesse ganhado um tom mais poético.