quinta-feira, 2 de abril de 2015

Pupila


Mesmo depois de se ter pingado três gotas de colírio em cada olho, a pupila do lado direito apresentou certa resistência em dilatar. Mas, tendo tudo ocorrido conforme esperado e passada a consulta oftalmológica, saí do consultório curtindo bastante aquele barato momentâneo sobre não conseguir enxergar quase nada da cidade que se avizinhava. Uma vez, ouvi um amigo, também míope, dizer que, às vezes, era melhor não tentar enxergar. Tirei isso do literal e trouxe para a vida real propriamente dita. E fui caminhando. De óculos escuros, atravessei a faixa de pedestres e segui até a parada de ônibus enquanto ensaiava alguma falação. Em meio aos vultos e a um punhado de gente anônima, me chamou a atenção uma moça. Estava de costas e usava uma camisa cinza ilustrada por quatro ícones e alguma palavra que eu não conseguia ler. Eram os Beatles. Ninguém tinha rosto. Conheci pelo formato dos cabelos. O dela, por sinal, estava preso para trás com uma liga verde cana (que não combinava com nada). Gostei dela por conta dos Beatles. Pensei em aproveitar a situação, sugerir que precisava de ajuda e pedir para que ela lesse o letreiro do ônibus que se aproximava. Fiquei pensando que ela jamais pensaria que isso acontecia porque eu não sabia ler. Especulei tanto, que acabei preferindo apertar os olhos e deduzir que, pelo formato das palavras, era chegada a minha hora. Arrisquei. Ela fez sinal. Eu também fiz. Eu entrei primeiro. Ela me seguiu. Eu sentei em uma cadeira na parte de trás quando o vulto dela passou por mim e foi sentar-se lá na frente. Fiquei a viagem inteira olhando para o vulto da moça e para os Beatles que estavam na camisa dela, até chegar a minha vez de saltar. Agora seria eu, pessoa física, quem iria passar pelo vulto da moça. I want to hold your hand na cabeça. Pensei em dizer: Desce comigo. Me leva para casa. Mas eu era tímida demais. Preferi chegar só.
 
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