domingo, 10 de outubro de 2010

O passado que contarei

"E no entanto é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar. É preciso cantar e alegrar a cidade. A tristeza que a gente tem qualquer dia vai se acabar, todos vão sorrir, voltou a esperança, é o povo que dança contente da vida, feliz a cantar."
(Vinicius de Moraes e Carlos Lyra).

Sabe, meu jovem amigo, essa canção me faz lembrar aquele momento difícil por que passamos antes de chegarmos até aqui. Muitos de vocês que cá estão nem mesmo eram nascidos, mas eu e uma turma de camaradas sabemos bem e jamais esqueceremos, porque a consciência, ao passo que nos faz crescer, tem também o poder de nos trazer a tristeza e o sofrimento. E foram esses os sentimentos que dividiram lugar com tantos outros em nossos corações.

Naquele tempo, o governo, que deveria cuidar das pessoas e reconhecê-las como protagonistas de um processo de mudança fortemente anunciado e igualmente esperado, foi o mesmo que cortou verbas de setores fundamentais à vida e ao desenvolvimento humano, como a saúde e a educação, que criminalizou os que por direitos lutaram, e que teve na pobreza uma verdadeira fonte inesgotável do enriquecimento de uma minoria.

Vi uma cidade linda que amei como se fosse minha, eleger e sucumbir nas mãos de um prefeito que, quase três décadas antes, fora o mesmo que fizera uso da polícia para perseguir e reprimir estudantes em manifestação, assim como vi, dois anos mais tarde, um estado desacreditar na esperança ao ver eleitos governantes corruptos ou mesmo assassinos, e com a ajuda de um governo que de esquerda se dizia, mas que fez reviver uma verdadeira oligarquia.

A concentração de terras e riquezas, os altos preços da farinha, do leite, da carne, do feijão e do pão, as crianças e pessoas em situação de rua, a opressão vivida por mulheres, negros, homossexuais e índios, a alta tarifa e a péssima qualidade do transporte público, os tantos casos de descaso nos serviços de saúde, a falta de democracia nos meios de comunicação, a falta de segurança que, quando não tomava de assalto o trabalhador morador de periferia, o prendia, o espancava ou o matava porque lhe entendia como inimigo, e mais ainda, a relação entre tudo isso e a política, foi fazendo despertar, pouco a pouco, a população para a necessidade de um levante.

É bem verdade que tudo isso demorou bastante, uma vez que o processo de construção de uma consciência verdadeiramente crítica demanda tempo, sobretudo quando o mundo inteiro gritava, e o tempo todo, que aquele estado de caos sempre existira e que era natural que daquela forma fosse. Por isso, a cada homem e mulher que acreditava na possibilidade de uma transformação radical da sociedade, foi preciso se doar incondicionalmente. E assim fizemos.

Estudantes e trabalhadores compreendemos que nossa tarefa militante e nosso papel naquele momento precisavam ser de desconstrução de uma ideologia e formação de um pensamento novo, mas não único, porque era necessário que o conflito existisse para que o conhecimento enfim se fizesse. Às massas, coube o convencimento de que mobilizar-se precisava estar para além de um período eleitoral e que, principalmente, as revoluções deveriam ser permanentes.

E cada roda de amigos, cada mesa, fosse ela de bar ou de jantar, cada sala de aula ou de casa, cada rua, cada campo, cada fábrica, cada chão encheu-se de vida e passou então a ser reconhecido como espaço de aprendizado, de trocas de conhecimento, do mesmo modo que passou a se compreender que cada pessoa, independentemente de sua condição, credo ou nível de instrução, era também produtora de sentido. Era preciso transformar a estrutura social, econômica e política do país inteiro, mas era também preciso transformar valores.

Assim, cada um colaborou a seu modo, colaborou com o que de melhor sabia fazer, mas esforçando-se também para aprender aquilo que o outro fazia, e que tinha importância. Então, a resistência deixou de ser foco e passou a se alastrar e, de forma paciente, a mudança começou a acontecer. A indignação voltou a ser sentida. Era preciso trabalhar e ir às ruas reivindicar. Era preciso conquistar e distribuir o poder. Era preciso cantar, escrever poesias, crônicas, contar piadas. Era preciso fazer renascer a esperança e a alegria.

Para muitos, é claro, isso tudo não passava de sonho, romantismo, utopia, loucura. Mas, subvertemos. Lembras que te disse, no início desta conversa, que a tristeza e o sofrimento trazidos pela consciência dividiam lugar com tantos outros sentimentos em nossos corações? Pois sim, entre eles estava o amor a nossa classe e foi ele o que nos moveu. Com a revolução, o verbo amar, até então em desuso, voltou a ser conjugado e o amor, mais que sentimento, virou uma prática. Voltamos a abraçar, a beijar, a festejar, a sorrir.

E é por isso, meu jovem amigo, que embora tenham sido de tristezas aquele tempo que vivemos, são boas as lembranças que me trazem essa canção, porque já muito antes dali ela falava de uma transformação e de uma mudança que acreditávamos ser possível e que lutamos para fazê-la acontecer, mesmo quando acreditamos que poderíamos não vê-la. Hoje aquele tempo não passa de lembrança ruim. É passado. Hoje somos verdadeiramente felizes.
 
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