sábado, 23 de agosto de 2008

Nossos ritos, minhas passagens

Faz metade de um ano que queimei aquele navio. Lembro-me da noite estrelada, do gramado molhado de sereno, da fogueira alaranjada, dos pulsos firmes, dos olhos úmidos e das mãos dadas a expressar a angústia de quase cem corações. Havíamos chegado ao final.
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Minutos antes, projetaram na parede do lado de fora do convento algumas fotos de todos daqueles vinte e três longos dias de toda a nossa vivência. Foram dias inesquecíveis. Em pensar que de início éramos apenas desconhecidos. Alguém vindo de alguma parte de Minas, do Brasil ou da América Latina em busca de uma experiência revolucionária. De algo transformador.
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E assim o foi. Dos sete dias de preparação, dos doze dias de vivência em acampamentos, pré-assentamentos ou assentamentos do MST, e dos cinco últimos dias correspondentes à fase de retomada, o último foi o mais doído. Todas aquelas lembranças, todos aqueles sentimentos.
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Se antes tínhamos conhecimento por meio dos livros de tamanha a opressão e as injustiças por que os movimentos sociais e populares passam, agora as marcas disso estavam minimamente expressas em nossos arranhões, picadas, calos e queimaduras de sol.
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Um arrepio imenso foi surgindo. Não havia como passar por tudo aquilo e ser simplesmente a mesma pessoa depois. Estávamos ali, de mãos dadas, quase que abraçados e a chorar. Uma fogueira, um barco de papel, um cesto de fitinhas vermelhas, a cor da revolução.
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Conta a História que na época do descobrimento das terras, um grande conquistador, ao aportar na América do Sul ordenou que seus homens ateassem fogo em seus navios para que não fossem traídos por suas próprias fraquezas e desistissem da luta para retornar às suas origens.
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As pessoas caminhavam pegavam um pouco de fogo na fogueira, ateavam no barquinho e diziam o que elas queimavam. “Eu queimo os pelegos!” Gritou um rapaz. “Eu queimo os burgueses!”, outro. “Eu queimo o capitalismo”. Eu queimei as opressões.
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Então, caminhavam até o cestinho de fita, pegavam uma e diziam o que plantavam. “Eu planto o socialismo!”. Falou uma menina em tom de ordenamento. “Eu planto uma sociedade mais justa!”, ouvi outro alguém dizer. Eu plantei a alegria. Uma genuína alegria. Uma alegria em forma de respeito, de companheirismo, de alegria, de felicidade.
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Aquele nada mais era que um dos muitos ritos de passagem por que cruzamos durante a vida. Diz-se de tais ritos que costumam ser preparações individuais ou coletivas que visam marcar pontos de desprendimento, o abandono de velhas atitudes e preparar para outras vivências, novas aceitações, em outras palavras, uma nova sociedade.
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Ali foi encerrado um ciclo e, ao mesmo tempo em que foi um final, foi também o começo, afinal, princípio e fim estão bem mais envolvidos do que muita gente pensa, tanto que muitas vezes é difícil saber onde um nasce para dar lugar ao outro.
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Na segunda-feira desta semana tentei fazer a mesma mística de queimar navios com os novos estudantes de Comunicação. Mesmo as pessoas todas tão desconfiadas, cheias de angústias e, mais ainda, medo de tocar umas às outras, ainda que fosse um segurar de mão somente, aquela ocasião teve para mim um sabor especial. Para eles, o começo. Para mim, talvez um fim.
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Recepcionei muitas turmas. Umas quatro ou cinco, pelo menos. E aquela idéia de que aquela seria a última foi me deixando com um nó na garganta. A semana passou e ontem, na sexta-feira, fiquei vendo os novos amigos que fiz nesse tempo de caminhada e o quanto me apeguei a eles.
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Após pedir moedas no corredor, fomos ao mercado central negociar os ingredientes para aquele o ponche. Será o último? Cada coisa parecia tão única. Cada detalhe. As ruas, os risos, as pessoas, os sorrisos. Ainda não consegui me acostumar com a idéia de ter que ir à Ufma apenas algumas vezes por conta de minhas novas atividades.
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Sentei no chão, no escuro e ao som da banda. Respirei fundo e pensei que talvez, se o carro não tivesse ar-condicionado e a janela do carro estivesse aberta enquanto fazíamos o caminho para o mercado, eu poderia ter falado do cheiro da maré do Bacanga ou da brisa do início de fim de tarde e assim, quem sabe, essa história tivesse ganhado um tom mais poético.

sábado, 16 de agosto de 2008

Coisas pequenas

Foto por Jéssica Xavier

Enquanto tremia de frio e fazia contorcionismos para segurar com a mão molhada um pouquinho de cigarro, ela me falava sobre as pequenezas do mundo. Desta vez, descrevia com bastante encantamento a fotografia de uma amiga que flagrava uma formiga que, em meio a uma movimentada avenida da cinza São Paulo, não carregava em suas costas uma folha ou um pedaço de doce que algum distraído deixara cair pelo chão, mas sim uma guimba.
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Ao mesmo tempo, minha hiperatividade de pensamentos me permitia ver a lua bonita e nova, ouvir a música que tocava no aparelho de som pequeno, escutar a conversa do grupo que estava na outra ponta da piscina, sentir a sensação da velhice ao tocar meus bastante enrugados dedos das mãos e dos pés e, por fim confessar o quão perfeita era aquela foto e o quanto eu queria que sua autoria fosse minha. E assim, era mais uma pequeneza que ganhara proporções imensas.
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Dos detalhes, das manias, das coisas que poderiam passar desapercebidas mas que, por alguém ou algum motivo acabam por subverter esta lógica, lembro-me da apaixonante menina Amélie que, após ver um senhor chorar de alegria ao receber de suas mãos uma caixinha com brinquedos e figurinhas por ele perdida durante a infância, tem sua visão de mundo modificada e todas as suas ações empenhadas na realização de gestos que, mesmo pequenos, fossem capazes de tornar as pessoas mais felizes.
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Le fabuleux destin d'Amélie Poulain (O fabuloso destino de Amélie Poulain), filme francês dirigido por Jean-Pierre Jeunet em 2001, é um daqueles longas que a gente não se importa de assistir mais uma vez mesmo já tendo feito isso tantas outras vezes. É como se não se quisesse que aqueles 122 minutos acabassem. É como sentir saudade e querer tudo de novo mesmo já tendo se passado tanto tempo em frente à TV.
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Fosse para matar um pouquinho dessa interminável saudade ou apimentar ainda mais ela, descobri que baseada no enredo do filme existe a série Pushing Daisies. E aí a confusão foi outra. Dos nove episódios que compõem a primeira temporada da série criada por Bryan Fuller, eu simplesmente me recusava a assistir o último. Não queria imaginar que o gostinho doce e cheio de alegria, como das tortas recheadas com anti-depressivos, tivesse chegado ao fim.
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Em Pushing Daisies, aos 9 anos, 27 semanas, 6 dias e 3 minutos, Ned descobre que tem o poder de fazer algo retornar à vida utilizando-se apenas de um toque seu. A partir de então, as descobertas sobre esse que até então poderia ser considerado um dom, vão se dando de forma trágica. Sua mãe sofre um AVC e morre. O garoto não exita e lhe traz à vida com um toque. É então que se descobre que, se algo é trazido novamente à vida, após um minuto, e nenhum segundo mais que isso, algo equivalente deixa de viver para dar lugar à nova vida. E a vítima era o pai de sua amiguinha Chuck, sua paixão.
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Um pouco mais tarde, na hora de dormir, de um beijo de boa noite, Ned faria a mais dificil de todas as descobertas: o primeiro toque era capaz de fazer voltar à vida, mas o segundo significava o retorno à morte, e desta vez, para sempre. Ned então cresce e transforma-se no “fazedor de tortas”. Ao lado do investigador Emerson Cod, ele se utiliza da habilidade de dar a vida a alguém por um minuto, para desvendar crimes por recompensa.
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E é nesta atividade que ele descobre que sua paixão de infância, Chuck, fora assassinada aos 28 anos, 24 semanas, 3 dias, 11 horas e 51 minutos. Ele a toca uma vez. Passasse um minuto e outra pessoa perde a vida. Ned decidira não tocá-la pela segunda vez. Os dois vivem então, uma relação literalmente intocável. Qualquer contato, mesmo que por discuido, pode ser fatal.
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E mesmo exitando tanto em assistir o último episódio, para minha surpresa a primeira temporada não termina com cara de “fim”. Talvez seja porque a interrupção se deu por conta de uma greve de roteiristas. Tá bom, tá bom. Tudo bem. Reconheço as greves como um importante instrumento de luta e reivindicações. Mas, poxa... Aguardo assim a segunda temporada, já confirmada para setembro.
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Agonia, sutileza, carinho, alegria. Todas essas emoções despertadas por uma tela. Uma narração pefeita. Uma fartura de cores. Um cenário modesto. E o melhor de tudo: uma infinidade de coisas pequenas. Vontades, sensações, pensamentos, sentimentos. Tudo tão singelo. Certo. Evitarei dedicar as imagens tão bonitas ou a fotografia perfeita das obras aqui citadas. Mas, como são minhas as palavras deste texto, essas sim dedico às Amélies, Neds e Chucks, amantes das pequenas coisas, pessoas de quem tenho ouvido falar ou mesmo encontrado pelas ruelas de minha alegre vida.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Não tem ninguém ao lado

Poucas ou mesmo nenhuma vez o fato de acordar e não ter ninguém ao lado fez tanto sentido como em minha madrugada fria de dois domingos atrás. Voltando um pouco no tempo, alguns dias antes, se atravesso o chão azul da sala e sigo até a janela imediatamente oposta à parede onde se encontra meu espremido saco de dormir, tenho como prêmio a tão bela vista para a Baía de Guanabara.
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Afirmo ser um prêmio porque quando se está na extrema esquerda de um alojamento que tem sua porta localizada à direita, e quando todo o espaço interno é ocupado por uma infinidade unicolor de colchões infláveis, atravessar a sala pode ser uma tarefa árdua. É por essas e outras razões que costumo dizer que já não se fazem mais encontros como antigamente.
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Pensando bem, já nem sei se são os encontros que já não são mais feitos como nos velhos tempos. Talvez o problema todo esteja mesmo nos encontristas. Tenho saudade de quando os alojamentos tinham cores que não somente o azul, assim como sinto falta dos tempos em que os estudantes tinham um compromisso, mesmo que mínimo, e eram conscientes de seu papel dentro dos encontros.
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As fábricas de colchões infláveis podem, em breve, começar a produzir colchões de cores diferentes, a não ser que exista uma explicação científica para que eles sejam todos da cor azul. Mas, e as “fábricas” para encontristas diferentes dos que vemos hoje, será que existem? Será que as verei?
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Estávamos no 29º Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação, em Niterói, Rio de Janeiro. Estávamos? Quem estava? Antes do encontro, os estudantes reclamavam ou mesmo clamavam para que entre os painéis, mini-cursos, oficinas, núcleos de vivência, grupos de discussão, estudo e trabalho, os tão falados espaços “lúdicos” fossem garantidos.
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E foram! Aos montes. Diria até que nunca vi tantos. Tivemos até, em nossa grade, o chamado “turiscom”. Mas ainda assim, mesmo com tanto divertimento garantido, o que vi foi um grande descomprometimento das delegações da maioria dos estados. Ah, mas eu não posso querer muito, afinal, não dá para competir com o Rio, não é? Por que eu, estudante de co-mu-ni-ca-ção, vou ficar discutindo co-um-ni-ca-ção, se posso ir ao Pão de Açúcar, ao Cristo Redentor, ao Jardim Botânico, à Lapa ou mesmo assistir um jogo no Maracanã?
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Apesar disso, o encontro teve muita coisa boa. Para entender um pouco, a Enecos, nossa Executiva de Curso, estava há um ano e meio sendo coordenada por comissões gestoras. A primeira comissão foi formada em nosso Congresso Brasileiro, em janeiro de 2007 em São Paulo, e a segunda em janeiro deste ano, em Maceió.
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No entanto, esta estrutura nos trouxe uma série de problemas, uma vez que os estudantes que compunham (por auto-indicação) tais comissões, não tinham entre si um planejamento mínimo de gestão. Além disso, não existiu um projeto político comum que trouxesse a consistência necessária aos debates que deveriam nortear nossas ações enquanto estudantes organizados em uma Executiva.
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Nesse sentido tivemos alguns consideráveis avanços. O Enecom serviu para se pensar, discutir e planejar novas atividades para a Enecos para os próximos períodos. Nos espaços, apesar de poucos, os novos estudantes participaram bastante e se comprometeram de tal forma que já podemos notar trabalho em algumas de nossas tantas listas de discussão.
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Além do mais, aproveitei a oportunidade para rever a família, abraçar apertado alguns dos meus bons e saudosos amigos, reviver antigos sentimentos e experimentar novas sensações, como um encontro inesperado no banheiro durante uma madrugada, deitar na grama, admirar o céu e pegar sol depois do almoço ou matar o final de uma roda de diálogo para ver, do corredor do andar de número 3 do bloco “N”, o pôr do sol alaranjado do Gragoatá.
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A parte sentimental da minha saga foi o frio que fez nos dois últimos dias. Principalmente no último. Lembro-me daquele burlesco conselho de centros e diretórios acadêmicos, aquele em que o cantor de um grupo de samba pegou o microfone para dizer que não estávamos com nada. Lembro-me, também, das cobranças que fiz... Da figurinha de chocolate que ganhei... De meu rosto, mãos e pés bem gelados... E de minhas (até então não sabidas) últimas palavras ao sair da tenda à procura de um pouco de calor no alojamento... Dormi.
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Só eu sei o susto que levei quando dei por mim, às 4h de uma madrugada fria, no cantinho mais apertado daquele alojamento. Na rapidez que virei para o lado, meu coração disparado e já em mil pedaços parecia querer encontrar alguém. Vários “alguéns”. Meus amigos estavam com saídas marcadas para as 23h... 2h... 3h... Uma ou outra saída atrasou, então pude me despedir de algumas poucas pessoas... Estou ficando velha, e a cada encontro a despedida fica mais difícil.
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Lágrimas, o fim do encontro chegou... E com ele, os encontristas. Desta vez, para me consolar... São meus amigos... Recolho o meu saco de dormir, que não é azul, e todos os colchões são esvaziados. Estou de volta à minha casa. Alguém tem contato para sugestões de alguma fábrica de colchões infláveis?
 
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